MUITO!



Bruno Cosentino + Marcos Campello

1. Muito
Caetano Veloso
Voz: Bruno Cosentino
Guitarra, tacos e ventilador: Marcos Campello

Produzido por Marcos Campello e Márcio Bulk
Mixado por Marcos Campello
Masterizado por Martin Scian
Projeto gráfico: Márcio Bulk


Mesmo que parecesse ser modesto – Muito! por Bruno Cosentino, Marcos Campello e Márcio Bulk
Raul Lorenzeti

Mudanças implicam revisões. Esculhambar lembranças e aproveitar para reflexões que fatalmente levam a algum tipo de cura. Muito!, de Marcos Campello, Bruno Cosentino e Márcio Bulk vem desse processo.

Tanto Cosentino com Babies, 2016, como Campello com Bansa, 2015, já mostravam interesse na crueza do registro, no sumo da performance plasmado no suporte (ainda que cada um num lugar específico e distinto da música). Foi Bulk quem propiciou o encontro, retomando uma ideia bem-sucedida em Soluços, 2013, e Banquete, 2014: fazer da canção o encontro entre o experimento e a tradição quebrando a hierarquia entre o som marginal e o consagrado.

Gravada numa casa em reformas, vazia, com os restos do que foi ali jazendo e exprimindo sons, lembranças encarnadas no corpo de quem ouve, Muito vira outra coisa. É como se a música e seu arranjo original, presentes no disco homônimo de Caetano Veloso de 1978, tivessem sido limados, talhados, lixados até o núcleo e o que sobrou é de certa forma tão essencial que avança noutra direção: aponta as possibilidades de uma canção menos interessada em ser estímulo, mais afeita a convidar o ouvinte a se aventurar na floresta dos signos e dos sentidos.

A guitarra de tons cansados de Campello e suas cordas afinadas em tons semialeatórios, amaciadas de todo o esporro sonoro que é a sua vida fora da canção, anuncia: as coisas não estão em ponto de bala como em Muito, de Veloso. Aqui, as coisas estão em obras e o fonograma nos indica o processo, o fazer, quase como a bola cantada por Lucier em I Am Sitting in a Room, 1969.

A interpretação do duo é tão enérgica e tão próxima como somente um encontro entre poesia e música poderia ser: sem salas acusticamente tratadas, sem playback e cantor na técnica. As coisas foram feitas cara a cara, ao vivo, um influindo no gesto do outro, um bebendo das dobras que o outro infligia ao tempo que vai se erguendo em forma variada, sem pistas do que vem a seguir. 

Quando canta, Cosentino e sua voz lânguida, de acento carioca, tomam parte da poesia que só existe no recriar, recitar, tomar conta do texto, regurgitar e ativar outra escuta, ainda que se aproxime do original enunciado. Os sons ambientes, pr’além da curiosidade, trazem a urgência do registro que trabalha noutra chave que não é só tensão e repouso. Abrem-se as sinapses no toque das pás do ventilador no captador da guitarra de Campello – ou seria um motor?

Todos os desatinos que levaram Bulk, Campello e Cosentino a se jogarem numa releitura sem escrúpulos ou reverências passam, definitivamente, pelo entendimento de que uma interpretação não esgota o signo, não define caminho, mas pode furar a superfície lisa e estéril do discurso consagrado/oficial feito mato no asfalto. 

Esse processo revela um cuidado interessante: o trio não se serve dos instrumentos, dos sons e do ambiente como artesãos modificando a matéria, mas a eles servem para que recuperem sua natureza original, viva. Citando Octavio Paz, “servo da linguagem, seja ela qual for, o artista a transcende”.

É outra forma para a mesma substância de Caetano, e pode ser questão de tempo até que esse modo de fazer fossilize no armário prático das referências. Todavia, enquanto o foco for no processo, o que se ergue é mutante e vivo, é incerto e indeciso, prenhe de sentido.

Onde é necessário uma nova obra por mês, focar nesta enquanto processo parece ser, sempre, digno de escuta.