TEMPOS ABSURDOS EM BANQUETE DE MÁRCIO BULK E CADU TENÓRIO

foto: daryan dornelles


Agora percebo, então, que a esperança não pode ser eludida para sempre e que
pode assaltar os mesmos que se achavam livres dela. 
(CAMUS, Albert. A criação sem amanhã. O Mito de Sísifo)

Em 2013, o Brasil conseguiu se tornar um lugar mais esquisito do que sempre foi: os protestos em São Paulo e no Rio de Janeiro transmutavam-se em algo que a teoria não dava conta. Diferentemente de Hardt e Negri, pensava-se em pauta, em discurso, em enunciado e, quando menos se percebeu, o choque com o Estado e a revolta com a “mídia golpista” caminhava para um apaziguamento com muito orgulho, com muito amor. O ano de 2013 também é o ano do lançamento de E Volto Pra Curtir, disco tributo a Jards Macalé.

Capitaneado pelo artista plástico de formação, jornalista e letrista nascido em Nova Iguaçu, Márcio Bulk, o disco era uma homenagem ao maldito e a sua atuação pelas bordas da MPB. Macalé havia se tornado um tema recorrente à contemporaneidade viva e dialeticamente desperta: recuperou-se sua obra e sua figura, deslocando-o do armazém de mercadorias culturais, onde se costuma buscar receitas abstratas. A análise crítica do presente e a possibilidade de uma apropriação produtiva da herança do passado tomavam forma no documentário Jards (2012), de Eryk Rocha, e na reprensagem, em 2013, do disco compacto Só Morto (1969-1970), o primeiro da carreira do compositor. Sim, Walter Benjamin descarado justificando o Macalé que balbuciou sobre o presente lá do passado.


Bulk ouviu o compacto e, como costuma acontecer com todo mundo que tem contato com este disco, apaixonou-se por “Soluços”. O contato, por conta de E Volto Pra Curtir, com músicos da cena experimental do Rio de Janeiro, como Marcos Campello e Bruno Cosentino (este mais “poroso” à canção que o primeiro) acabou providenciando o encontro com Cadu Tenório, músico crescido na zona norte do Rio, beirando a linha do trem, onde vive até hoje. Juntos, realizaram o EP Soluços com a participação de Alice Caymmi.


“Eu chapei! Achei aquilo demais. Não que seja uma fórmula, mas saca quando você vê algo que é a sua cara? Foi isso que eu achei. É isso! Isso é meu!” — comenta Bulk sobre o trabalho de Tenório, reconstruindo a sonoridade da canção a partir de uma gravação voz (Alice Caymmi) e guitarra (Lucas Vasconcellos), esta completamente extirpada do resultado final. Desenhava-se, nesta obra, neste processo, o modus operandi de Banquete (2014).


Composto a partir de letras que Bulk recuperou e remixou de um blog que mantinha nos anos 90, Banquete é um disco composto de 4 faixas: “Café Expresso”, “Estela”, “Electric Fish” e “Em Transe”. As letras foram enviadas a Bruno Cosentino, Rafael Rocha e César Lacerda, que providenciaram a primeira encarnação das canções, arranjadas ao violão para as vozes de Michele Leal, Alice Caymmi, Livia Nestróvski e Letícia Novaes, que não participou do disco, sendo substituída pela voz de César Lacerda em “Electric Fish” (curiosamente, nenhuma mulher se dispôs a cantar uma canção que versa sobre sexo oral).


Voz e violão, formato clássico de canção, aquela mesma que disseram ter acabado, dez anos antes da produção deste álbum.


Antes de falar da implosão deste formato no processamento de cada fonograma, é interessante olhar para o disco. A capa é uma natureza morta, do séc. XVII, de Jacques Linard. Ao enviar as letras que virariam canções, Bulk enviou também a capa do disco para os músicos. A tela é feita de corais e conchas dispostas sobre um fundo preto — o fundo do oceano — e é impossível não associar esta imagem ao trabalho de Tenório no arranjo das canções.


O mar está presente em "Estela”; o peixe, em “Electric Fish”; a comida, em “Café Expresso”; e “Em Transe”, um banquete oceânico. Quando da construção das letras, Bulk lia O Banquete, de Platão, e Fragmentos de um Discurso Amoroso, de Roland Barthes. Para remixar as letras de 20 anos antes, a leitura de ambos foi retomada. Quase o nome do disco virou Fragmentos..., mas seria óbvio demais. Banquete ganhou a parada.


E, como Aristófanes pontua no diálogo platônico, o disco trata do complexo caminho — e dos desdobramentos disso — até a outra metade, aquela que faz homens e mulheres correrem esbaforidos, em pânico, no desejo de voltarem a ser inteiros, uma vez divididos pela sabedoria de Zeus. O discurso é amoroso, quase perverso; a forma, primeira, é do samba-canção.


A ordem das canções era outra e contavam uma história contemporânea: um encontro casual, o enlace, a despedida e a avaliação. Uma vez alterada por conta de dinâmicas e da necessidade de conceber um álbum mais coeso na sonoridade que no sentido, produzem outro enunciado, mais focado nas realizações a partir de um passado cristalizado/consagrado — a forma samba-canção, apontando para outras possibilidades de escuta e produção da canção: a corporificação da letra na performance não está inteira no primeiro plano, é tensionada pela mancha sonora que ocupa o lugar consolidado do violão/harmonia na forma canção.


“A canção existe e sabemos que ela é de suma importância junto à sua letra. No Banquete também o é, muito. Porém, rolou o cuidado de que a voz pudesse descer do palanque e, entre aspas, disputasse por vezes com o peso musical, com a emoção e o peso do arranjo, como numa relação de simbiose. Uma tentativa de diálogo com menos formalidade” — explica Tenório sobre a concepção dos arranjos e da sonoridade que perpassa o disco.


“Café Expresso” abre o disco na interpretação de Michele Leal. De início, um ruído e um violão processado até se parecer com um piano, dão pistas do que está por vir. Uma música sem refrão, com algo que se aproxima de parte A e B, porém, com um trecho de spoken word ao final, submerso entre ruídos de fita e cordas tocadas ao contrário. Anuncia-se aí a diferença de escuta: dificilmente irá se entender toda a letra na primeira escuta pois, de fato, existe uma disputa com o arranjo pelo lugar de atenção do ouvinte.


A tecnologia utilizada para tensionar os limites da linguagem: esta é a tese que interessa em Banquete. Este disco não seria possível sem um olhar para o passado que tensiona ao invés de explicar o presente; tampouco seria realizado sem a invenção do transistor, da fita, do processamento digital do som, da contínua evolução da tecnologia.


Bulk e Tenório foram muito felizes em propor outro lugar para a canção. Um lugar que parte do samba-canção, mas que o implode no som e na letra (É pela voz que eu desisto/Não preciso levantar/Enamoro a derrota/vou ao fundo/abraçando o desafino em um samba-canção manco — em "Em Transe"); um lugar coletivo e desmaterializado, parecido com a forma como nos relacionamos hoje, e é sintomático que o disco não tenha ganhado espaço na mídia impressa, chegando até nós via post no Facebook.


A música de Macalé já tinha cantado a bola, partindo da borda, desafinando o coro dos contentes, apontando que as mudanças estão ocorrendo e, talvez, o desejo de ver o mundo através de um filtro, de sobrepor um sistema racional a sua aparente aleatoriedade, seja o limitador da canção. Vivemos tempos absurdos — sempre vive(re)mos — e, retomando o Camus da citação que abre o texto, “ [...] todo pensamento que renuncia à unidade exalta a diversidade. E a diversidade é o lugar da arte. O único pensamento que liberta o espírito é o que o deixa sozinho, certo de seus limites e do seu fim próximo[...] Por isso, peço à criação absurda o mesmo que exigia do pensamento: revolta, liberdade e diversidade. Depois ela manifestará sua profunda inutilidade [...]”.


Banquete trata-se de uma obra sem esperança de organizar as coisas, calcada mais na disputa do que no enlace de letra e música. Este, nos parece, é um caminho interessante para a canção, uma apropriação produtiva da herança do passado. Ser diversa, revolta e livre para, ao final, não importar, pois está ali enquanto tensão, sem moral, sem princípio organizador uma vez que não há o que organize a vida e a linguagem é espelho desse universo caótico, correndo atrás de algo impossível de alcançar.



Raul Lorenzeti é editor web do Selo Sesc. A resenha foi escrita originalmente para a conclusão da disciplina Canção Popular e Cultura, ministrada por Cacá Machado, no curso de pós-graduação sobre canção popular brasileira, da Faculdade Santa Marcelina.