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colagem: márcio bulk

A música nasceu para mim, no meu delírio genealógico, do enleio entre o útero da minha mãe, sua musicalidade e o seu canto. Penso nos meses da sua gravidez, penso nela ao tocar piano e, por fim, lembro-me de que os pequenos acalantos improvisados para me ninar foram o nosso primeiro código tácito de afeto. Inicio assim, com uma digressão, como forma de explicar (e também compreender) o papel da música para mim como gesto afetivo, completamente ligado aos sentidos, e determinantemente empírico; subjetivo.

Sou nascido numa pequena cidade do interior de Minas Gerais: Diamantina. Uma cidadela tradicional mineira, que tem hoje algo em torno de cinquenta mil habitantes, com uma história muito interessante e de especial protagonismo por um período da história do Brasil. Com profunda vocação para a música e para a musicalidade, é uma cidade festiva e de arquitetura barroca leve e clara. Minha mãe, uma pianista mulata, nasceu e foi criada lá, tendo sido por alguns anos a diretora do Conservatório de Música. Casou-se com meu pai, um comerciante de olhos claros nascido na região central de Minas Gerais, Moema. A influência mais direta da música na vida da minha família, através de um ensino mais formal, está relacionado efetivamente à minha mãe. Cresci junto dela, fazendo aulas e oficinas na sua escola de música. Somos três irmãos, dois homens e uma mulher, e todos temos a música apontando para o norte de nossas bússolas. Meu pai, por sua vez, sempre foi um profundo admirador da música e na sua adolescência chegou a ser percussionista numa banda de baile. Toda a informação de música regional e verdadeiramente popular, com traço romântico ou mesmo brega, veio dele. E portanto, na nossa família a música deve ser compreendida sempre através dessa narrativa ambivalente. A porosidade do nosso tecido é atuante desde o encontro dos nossos pais.

Algo marcante nessa trajetória em busca do fazer música, tornar-se um músico, surgiu ainda na infância quando os heróis dos desenhos animados da TV começaram a dividir o seu protagonismo com os músicos pop stars que surgiam através da chegada da adolescência dos meus irmãos mais velhos. E que eu, naturalmente, ouvia. Isso coincidiu com a chegada de um aparelho que tocava CD lá em casa. Lembro-me com clareza das tardes que passei ouvindo discos, imitando os músicos, e formulando em mim um incipiente desejo de ser aquilo, e não mais jogador de futebol ou, sei lá, astronauta.

A história se desdobra nos diversos momentos que vieram a seguir. A descoberta, pouco a pouco, dos universos mais distintos, dos territórios mais maravilhosos que a música viria a ocupar no centro da minha fruição; tantos e tantos e tantos e tantos discos, shows, concertos, elevadores, propagandas... Não obstante, foi entre e infância e adolescência que tive a chance de me aproximar de diversos instrumentos e me sentir seduzido pela oportunidade de querer todos como forma de expressão. Estudei violão, piano, flauta, violino, percussão, bateria, canto... enfim, uma infinidade de possibilidades. E isso, para mim, só explica o fato de que a música foi se tornando exclusivamente um meio de expressão. Uma língua inventada por mim, pela minha compreensão das coisas, onde seria possível me conectar com o mundo através das formas mais subjetivas. É como se a música fosse, em suma, o meu meio de me ligar a esse centro sagrado, esse magma espiritual que, de uma forma ou de outra, a existência de todos aqui na Terra tenta, ao menos, triscar. Fazer música, tê-la comigo como algo além de uma profissão, mas um status que me define para além até da sociedade, é dividir com o mundo uma instabilidade que toca a todos. Essa busca do eu, de afunilar a percepção do mundo para uma compilação de sensações (uma canção!), tentar reproduzir isso, fazer com essa expressão chegue à sensibilidade do outro e o atravesse... em suma, a música foi se tornando isso para mim.

Agora, ocorre-me o exemplo da luz, do feixe de luz que atravessa uma pessoa, preenche seu corpo, sua saúde, sua matéria desse finíssimo pó de existência. Penso na música através desse exemplo e encontro abrigo. Percebo nela uma fragilidade, uma ambígua coadunação com o silêncio. E ao mesmo tempo, e por isso mesmo, uma força violenta que pode abrir canais da existência de formas avassaladoras, e se manifestar através de lágrimas, sorrisos, decisões, apontamentos, coragem, amor.

E tendo dito isso, coloco-me em vida à prova disso tudo. Sabendo que a deusa Música abre seus canais de diálogo com uma sensibilidade única, ligar-se a ela é exercício meditativo diário. Penso sempre que esses canais que foram abertos com grandeza épica nesta época que vivemos, trouxe também uma desordem grande, um cansaço, um distúrbio, um sintoma. E música, para mim, tem também se tornado uma busca pelo silêncio. Fazê-la tem sido oportunidade de não persegui-la.

Em suma, esse castelo de areia que se constrói para se explicar o artesanato da feitura da música se choca diretamente com a existência dela nas nossas vidas. Afinal, música e silêncio serão sempre maiores que o nosso falatório (‘inda que o falatório deseje ser poesia, e portanto música). E por fim, respondo-te: Porque você faz música? Não sei.

César Lacerda é cantor, compositor e multi-instrumentista. Lançou seu primeiro álbum, Porquê da voz (independente) em 2013. Seu disco seguinte, Paralelos & infinitos, foi lançado em 2015 pela gravadora Joia Moderna. Paralelamente, participou de diversos projetos, como Instantâneos (DOBRA/Bolacha Discos), Banquete (Banda Desenhada Records) e Mar Azul (Slap).