CANTO PUNHALADA

fotos: daryan dornelles

A palo seco é o cante
de grito mais extremo:
tem de subir mais alto
que onde sobe o silêncio;
é cantar contra a queda,
é um cante para cima,
em que se há de subir
cortando, e contra a fibra.

Ao escrever o poema “A palo seco” (Quaderna, Guimarães Editores, 1960), João Cabral de Melo Neto evidenciou o que lhe era mais caro em seu ofício: a busca por uma escrita exata e contundente, mimetizada à rudeza do sertão nordestino e ao canto flamenco. Uma poesia sem rodeios e aguda. Como Encarnado, primeiro álbum solo de Juçara Marçal. O disco foi lançado de forma independente em fevereiro deste ano e vem sendo considerado por diversos jornalistas e críticos musicais como um dos melhores de 2014. Interpretando canções onde vida e morte se embatem a todo instante, Juçara dá voz a personagens extremamente fortes que, em situações limítrofes, percorrem uma via crucis onde já não há mais espaço para jogos ou floreios. É tudo ou nada. É “o cante a palo seco/sem o tempero ou ajuda”. Contudo, diferente do poema, o canto de Juçara nunca se faz só. Mesmo ao interpretar canções pontuadas pela desolação, é através da confiança em seus parceiros que a artista vem construindo sua carreira ao longo dos anos.

Intérprete de voz singular, Juçara tornou-se uma das mais importantes cantoras da música brasileira contemporânea. Nasceu em Duque de Caxias (RJ), mas foi, ainda criança, para São Caetano do Sul (SP), mudando-se, em seguida, para São Sebastião (SP). Radicada na capital paulista desde o início dos anos 90, iniciou sua carreira artística ao integrar a Companhia Coral, sob a regência do maestro Samuel Kerr e direção cênica de Willian Pereira. Ingressou em 1991 no grupo Vésper Vocal, com quem lançou quatro discos: Flor d’Elis (Dabliú Discos, 1998), Noel Adoniran  180 anos de samba (Eldorado, 2002), Ser tão paulista (CPC-Umes, 2004) e Vésper na lida (Pôr do Som, 2013). Em 1998, tomou parte do grupo A Barca, com quem realizou uma extensa pesquisa na área de cultura popular, o que resultou em dois álbuns, Turista aprendiz (CPC-Umes, 2000) e Baião de princesas (CPC-Umes, 2002), além de Trilha, toada e trupé (Cooperativa de Música, 2006), caixa com três CDs e um DVD,  e a Coleção Turista Aprendiz (Cooperativa de Música, 2010), contendo vários registros sonoros e sete curtas. Em 2007, ao lado do violonista e compositor Kiko Dinucci, iniciou sua parceria mais prolífera, lançando o disco Padê (2007, Cooperativa de Música). No ano seguinte, formou com Kiko e o saxofonista Thiago França o trio Metá Metá. Com o Metá Metá, lançou dois álbuns: Metá Metá (Desmonta, 2011) e Metal Metal (independente, 2012). O trio ganhou, em 2013, o Prêmio Multishow de “Música compartilhada”, tendo sido também indicado às categorias “Disco do ano” e “Versão do ano”, com a canção “Let’s Play That” de Jards Macalé, regravada no disco E volto para curtir (Banda Desenhada Records,2013). O grupo já realizou turnês em diversos estados do país, além da Europa e América Latina. Em 2014, Juçara lançou Encarnado. No disco, interpretou canções de seus colegas Kiko Dinucci, Rodrigo Campos, Romulo Fróes e Thiago França, além de Itamar Assumpção, Tom Zé, Siba, entre outros.

Em turnê de lançamento de seu álbum, Juçara veio ao Rio, onde se apresentou em curta temporada na Audio Rebel. Aproveitamos a oportunidade para entrevistá-la em um passeio pelo Largo do Machado e o bairro do Flamengo. Ali, conversamos a respeito de sua carreira, parcerias, vanguarda paulista e muito mais.

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E O TEMPO CANTA

fotos: daryan dornelles
Durante décadas, foram fatos incontestáveis a baixíssima presença e o preconceito em relação à figura feminina no espaço composicional da música popular brasileira. Esse quadro só foi alterado a partir dos anos 90, com o surgimento de nomes como Adriana Calcanhotto, Zélia Duncan, Arícia Mess, Suely Mesquita, Mathilda Kóvak e Érika Martins. A expansão do mercado independente desencadeada na década seguinte fez esse número ampliar, decretando, enfim, o término dessa longa misoginia. Entretanto, paralelamente, desenvolveu-se em boa parte dos jornalistas e críticos musicais uma aversão sintomática às novas cantoras que se dedicavam exclusivamente ao trabalho de intérprete. Uma aversão provocada tanto pela quantidade desmedida de vozes que surgiram no rastro de Marisa Monte e Cássia Eller quanto pelos inúmeros tributos que impregnaram o mercado fonográfico. Coube então às novas intérpretes reiterar suas convicções estilísticas e confiar na qualidade de seus trabalhos. Assim, nadando contra a corrente, Marcia Castro, Fabiana Cozza, Juçara Marçal, Simone Mazzer e Lívia Nestrovski, dentre outras vozes femininas, passaram a conquistar seu devido espaço e, aos poucos, obter reconhecimento.

Filha do compositor e violonista Arthur Nestrovski, Lívia nasceu em Iowa City, nos Estados Unidos. Voltou definitivamente ao Brasil em 2002, onde formou-se em canto popular pela Unicamp.Ainda na universidade, conheceu Arrigo Barnabé, com quem passou a se apresentar em shows como Clara Crocodilo e Salão de beleza. Em 2009, formou um duo com o guitarrista Fred Ferreira, apresentando-se em diversos palcos do país, além de Colômbia e França. Lívia também fez parte do grupo Cumieira, com o qual gravou, em 2010, o CD Festa da Cumieira (Cumieira). Em 2011, integrou-se ao grupo vocal BeBossa, realizando apresentações ao lado de Roberto Menescal e Wanda Sá. Em 2012, atuou nos espetáculos Dolores Duran por Lívia Nestrovski, Dalva & Herivelto — Sinfonia de pardais e Ary Barroso — Pra machucar meu coração. No mesmo ano, lançou com Fred Ferreira o CD Duo (independente/Tratore), interpretando composições de Tom Jobim, Milton Nascimento, Kurt Weill, José Miguel Wisnik, entre outros. Em 2013, defendeu sua dissertação de mestrado em musicologia sobre o scat singing na música brasileira. Nesse mesmo ano, gravou, ao lado de Arrigo Barnabé e Luiz Tatit, o álbum De nada mais a algo além (Atração Fonográfica), lançado em 2014.

Uma das vozes mais interessantes do atual cenário musical brasileiro, Lívia Nestrovski aceitou o convite do Banda Desenhada para esta entrevista, realizada no Hotel Sesc Copacabana. A cantora nos falou a respeito de seu trabalho de intérprete, influências, vanguarda paulista e universo acadêmico.

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