quedas e curvas

fotos: daryan dornelles
Em 2013, o Banda Desenhada realizou a primeira de uma série de entrevistas onde jornalistas de diversas capitais do país analisam a cena local. Na ocasião, coube a Marcus Preto a tarefa de relatar a evolução e a ascensão da cena independente paulistana. Agora, colocado em situação mais espinhosa, Leonardo Lichote analisa o cenário carioca, sua crise e desdobramentos, relacionando-os com a atual e conturbada conjuntura política do país.
Atuando desde 2001 como repórter e crítico musical do jornal O Globo, Lichote colaborou com o livro de memórias de Erasmo Carlos, “Minha Fama de Mau” (Objetiva), sendo responsável por assinar o seu texto final. Também é autor dos textos críticos que acompanham a caixa de Chico Buarque, “De Todas as Maneiras” (Universal), que contém os 22 primeiros discos do artista. Comentarista do programa Faro MPB (rádio MPB FM) e jurado dos dois principais prêmios de música do país  Prêmio Multishow e Prêmio da Música Brasileira , Lichote também é uma das figuras mais presentes e incentivadoras do cenário independente carioca.
A entrevista que se segue, desenvolveu-se ao longo de alguns meses, com algumas interrupções e retomadas, em meio a longas conversas e uma troca constante de e-mails.

BD – Desde a última década, com as mudanças no mercado fonográfico e o fortalecimento da cena independente, diversos blogueiros ganharam um poder que até então pertencia aos profissionais das grandes mídias. Como foi para você lidar com essas transformações e o que você vê de positivo e negativo nesta situação? 

Leonardo Lichote  Quando se fala de cultura, temos que entender que a compreensão (e até mesmo a existência) de um cenário, um momento, um fato, nasce a partir de várias vozes que se lançam sobre ele. Essa dinâmica sempre existiu, mas antes era exercida unicamente em espaços privilegiados como os jornais. Hoje - há pouco mais de uma década  ela se espalha, essa ideia de horizontalização do debate é clara. Não só nos blogs, mas também em espaços menos sistematizados, como o Facebook e o Twitter. A queda do especialista? De forma nenhuma. O negócio é que antes os especialistas eram referendados pelos grandes veículos. Hoje, são referendados pelo público (que pode ser um micropúblico, um gueto). Ou seja, não temos a figura do especialista versus a figura do amador. Temos especialistas referendados em universos diferentes.
Pra mim, como jornalista e acima disso um sujeito interessado em cultura (música mais que tudo), não tem como eu entender isso de forma negativa ou apocalíptica, como prega o livro “O Culto do Amador” [Andrew Keen, Zahar]. Porque a “verdade” que sai da resultante desses mil discursos é muito mais interessante do que a que desce de uma voz (ou de um grupo limitado de vozes) de um Olimpo ilusório.
Digo isso sem esvaziar a minha responsabilidade e a de colegas críticos e jornalistas d’O Globo e de outros grandes veículos. Entendo meu papel como diferente da função de um Banda Desenhada, um Urbe, um Outros Críticos, um Hominis Canidae. Meu público inclui o leitor especializado (há uma interseção entre meus leitores e os seus, por exemplo), mas é muito mais abrangente do que isso. A consciência de estar falando com um público maior e mais tradicional te obriga a um olhar mais amplo. De compreensão da responsabilidade que isso envolve. Saber usar as referências e o vocabulário de maior alcance possível. E não ignorar que seu olhar, seu discurso como jornalista de um grande veículo, alcança mesmo esferas de poder real  os gestores culturais que têm a chave do cofre leem o Segundo Caderno, por exemplo.
Esse poder  não do jornalista, mas do veículo  ainda vale. Conceitualmente, é claro que acho que minha força ou a de um crítico que faz seu trabalho num blog é equivalente, que estamos ambos lançando olhares diferentes sobre a mesma matéria, o que acho ótimo. Em determinadas esferas, a produção dele é mais valorizada do que a minha ou a minha é mais valorizada do que a dele, o que pouco importa para o núcleo da questão, que é: melhor muitas vozes que poucas.
Mas é ingenuidade não perceber que uma crítica positiva, uma reportagem de capa em um grande caderno cultural, importa muito no mundo real, falando em termos bastante pragmáticos. Fui lembrado disso uma vez ao relativizar a importância dos grandes veículos, numa conversa muito similar a essa que estamos tendo agora. Um artista falou: “Tudo bem, mas uma matéria do Segundo Caderno anexada ao meu projeto me ajuda a ganhar um edital”.
Não que a coisa se encerre nessa objetividade de grana. A entrada de um grande veículo gera uma ampliação do debate mesmo, traz para ele vozes que não estavam presentes até então. Uma matéria, por exemplo, sobre as articulações da cena carioca  como a “Novo Rio”, que fiz para o Segundo Caderno – é um desdobramento natural de mil conversas informais que vinha tendo com pessoas como você, em mesas de bares ou inboxes. Mas no momento em que é impressa na capa do Segundo Caderno, ela convida para a conversa gente que estava totalmente fora desse circuito e fomenta algo  nem que seja sua negação, um refinamento de argumentos.

kassin

BD – Ainda falando a respeito das mídias tradicionais, uma das principais críticas ao modus operandi da nova geração é o uso de uma estrutura que, de certa forma, repete os mesmos vícios das grandes corporações. Zeca Baleiro e alguns outros artistas chegaram a apontar como negativo o poder que as assessorias de imprensa ganharam nos últimos anos... afinal, qual é o nível de influência de uma assessoria dentro das redações dos grandes jornais?

Leonardo Lichote  É difícil falar nesses termos de influência/não influência, porque estamos falando de música, um assunto que todo mundo que está envolvido ali gosta para além das questões jornalísticas/profissionais. Portanto, muitos desses assessores  assim como produtores e artistas dos quais nós jornalistas somos mais próximos  acabam oferecendo uma curadoria mesmo, na qual temos mais ou menos confiança a partir do que sabemos de seus gostos, de sua competência. Ou seja, há essa influência, se você quiser chamar assim. Da mesma forma que sirvo de filtro para algumas pessoas, algumas pessoas (eventualmente assessores) servem de filtro para mim. Um filtro entre tantos  não estou falando aqui de lobby e sim de encontros entre pessoas interessadas, no caso, em música.
Esse é um ponto. Mas tem outro lado, menos romântico. A parada é business. Nesse sentido, há claramente a repetição de padrões da velha assessoria. O lançamento do álbum de um artista desse grupo que atrai o interesse dos cadernos culturais (Criolo, Marcelo Jeneci ou Kassin, por exemplo) passa pelos mesmos mecanismos de um medalhão: negociação de exclusividade, publicação de notinhas que aumentam a expectativa sobre o disco, etc. Uma estrutura que, sinceramente, me dá algum conforto  afinal, sou d’O Globo, um dos maiores jornais do país, entre os três que interessam diretamente a essa geração como espaço, mesmo sabendo que muitos desses músicos há alguns meses vêm se posicionando contra a linha editorial do jornal. Mas, apesar do conforto, me parece mais interessante um esquema como o do Rodrigo Amarante, que soltou “Cavalo” no mesmo dia para qualquer um que quisesse ouvir (grande imprensa, imprensa nanica, fãs). Mais coerente até.
Sobre o crescimento da importância das assessorias, temos que lembrar que ele não se estabelece de forma autoritária, e sim atende às demandas de jornalistas e artistas. Da privatização das nossas relações pessoais no Facebook e no Instagram até a profissionalização radical de nossos artistas (transformados também em homens de negócios), a potência existencial e o pragmatismo cínico caminham de mãos dadas neste início de século.

marcelo camelo

BD  Mesmo atuando exclusivamente no caderno de cultura, imagino que, de certa forma, você acabe tendo que lidar com o posicionamento contrário de alguns artistas em relação à linha editorial do caderno político dO Globo. Como você vem lidando com esta questão? Já houve algum embate mais acalorado? 

Leonardo Lichote  Essa questão bate de forma muito residual na minha editoria. De qualquer forma, é bastante perceptível, em meus encontros com artistas dessa geração ou mesmo em suas postagens no Facebook, a oposição que alguns deles vêm fazendo à cobertura do jornal. Como isso impacta em meu trabalho, no sentido de haver resistência ou provocação por parte dos artistas? Muito pouco. É praticamente nulo esse posicionamento de não querer falar com o jornal ou algo assim. Nas poucas vezes em que me deparei com algo do tipo, respeitei, claro. Mas não posso deixar de identificar aí certa dificuldade desses artistas em ter maleabilidade ao se lançar no conflito de ideias  ou, sendo mais pragmático, de interesses. Em outras palavras, respeito o boicote como possibilidade de manifestação política, mas não acho que ele parta da leitura mais precisa, mais complexa, sobre a atuação do jornal ou sobre como resistir a ela. Há questões não políticas do noticiário do Segundo Caderno, por exemplo, que são erroneamente politizadas nessa leitura mais dura. A lógica de um jornal diário implica em omissões e recortes  e eventualmente, simples erros. E isso, às vezes, é entendido como uma postura política determinada e maquiavélica. Uma leitura simplista, que, a priori, não está errada, mas tampouco está certa. Mas, claro, a decisão pelo boicote ou pelo diálogo pertence a esses artistas, e são eles os responsáveis pelo que ganham ou perdem com ela. Respeito-os a partir do momento que eles abraçam essa responsabilidade.

teresa cristina

BD – A maioria da nova geração tem bastante dificuldade em assumir publicamente qualquer vínculo estético, inclusive questionando o uso de diversos termos ou mesmo negando a existência de cenas, coletivos ou de uma historiografia que possa, minimamente, uni-los em um contexto geracional. Isso deve dificultar bastante o seu trabalho, não? 

Leonardo Lichote  A Tropicália existiu? O Clube da Esquina existiu? A bossa nova existiu? O manguebeat existiu? O Rock Brasil dos anos 80 existiu? Não tenho dúvidas de que sim. E cada um desses momentos partiu de um tipo de articulação conceitual diferente, umas mais elaboradas e fechadas, outras mais abertas e frouxas. Mas posso dizer não só que isso tudo existiu como também que cada um deles não existiu somente por seus produtos artísticos. A Tropicália, por exemplo, não é só os discos do Caetano [Veloso], do [Gilberto] Gil, dos Mutantes... É tudo que se disse e se escreveu sobre ela desde seu início até hoje. É uma narrativa, um discurso. Uma tentativa de dar sentido a um todo que nunca fará sentido se nos concentrarmos no que ele tem de explosão de individualidades, de fenômenos únicos. Ou fará um sentido que funciona dentro da lógica da arte, mas não na do jornalismo ou da História da Arte.
É sempre uma narrativa. Cenas, gerações, tudo isso é (ou deveria ser) essa tentativa não de sufocar individualidades em nome de um rótulo, uma etiqueta, mas sim tentar entender ou iluminar os traços em comum (estéticos, afetivos, políticos, históricos) que atravessam essas individualidades.
Entendo perfeitamente essa negação por parte dos artistas contemporâneos. Primeiro porque eles são, quase sempre, nomes em início de carreira, uma categoria que tem uma necessidade real de afirmar sua individualidade, dizer o que é para o mundo. Além do mais, não há uma narrativa consolidada sobre sua geração, e portanto existe a insegurança e a desconfiança sobre a construção dessa narrativa. E ninguém quer ver sua música ser reduzida a um rótulo que diz pouco sobre ela. Nem eu, como jornalista, quero fazer isso  e procuro evitar isso em um esforço consciente.
Mas acho que falta muitas vezes, por parte dos artistas, a compreensão de que o discurso de amarração de uma “cena” (com todas as aspas do mundo) é a construção de uma narrativa possível. Uma entre muitas. Uma narrativa que opera numa lógica que, reafirmo, não é a da arte. Mas não é incompatível com ela. São duas perspectivas que não só podem dialogar, mas que sempre dialogaram. Todo o discurso que temos sobre a arte e, mais especificamente, sobre a música brasileira, parte desse diálogo. A forma como essa geração absorve os discos de Caetano, Milton [Nascimento], João Gilberto, passa sim por uma experiência pessoal e única com essa obra, mas também com todo o discurso construído (por jornalistas e críticos, muitas vezes) e compartilhado sobre essa obra.
Negar a existência de um contexto, do impacto de se pertencer a um tempo, estar numa cidade, negar isso me parece se prender a uma etapa superada do debate. Porque nenhum desses artistas faria a música que faz se estivesse no fim do século XIX. Uma obviedade, por motivos tecnológicos ou mesmo se pensarmos na bagagem cultural que foi construída no século XX. Repito, uma obviedade, ou seja, nem me parece muito perspicaz da minha parte enunciar  algo tão claro. Portanto, o contexto não só existe como ele é o ponto de partida da produção individual e a base mínima comum que atravessa toda a música que está sendo feita hoje. Thiago Amud  artista que não se identifica de forma nenhuma com o que vem sendo chamado meio desajeitadamente de nomes como Nova MPB, cuja obra ambiciona, até com certa dose de petulância, dialogar com o mais elevado que o Ocidente produziu em termos de música ao longo de sua História  é um artista do século XXI. O samba da Lapa, acusado de saudosista, é um gênero do século XXI, que se realiza como gênero instaurando algo novo dentro do samba, mesmo que involuntariamente. O experimentalismo de Negro Leo  que tem também raízes históricas, ao dialogar com vanguardas musicais que datam de um século ou algumas décadas  também é filho do século XXI, Rio de Janeiro, “não vai ter Copa”.
Portanto, o debate não é negar a construção de uma narrativa  ou seja, negar esse ofício do jornalista, do historiador. O debate é sobre a narrativa que está sendo construída. Nova MPB faz sentido? Pensar a cidade como eixo central de uma cena faz sentido? Falar “a característica dessa geração é a diversidade” (como se todas as outras gerações fossem monolíticas e, portanto, as narrativas sobre elas seriam mais legítimas do que as feitas sobre essa suposta diversidade supostamente inédita na História) faz sentido? Opor conservadores e vanguardistas faz sentido? Acreditar que todo mundo que está aí hoje é filho da bossa nova ou do tropicalismo faz sentido?

negro leo

BD – Mas sempre houve certo conflito entre conservadores e vanguardistas, não? Mesmo que, em alguns casos, seja de forma bastante superficial, houve algum embate entre a bossa nova e o samba canção, a tropicália e a MPB dos festivais, o BRock e a MPB, e, mais recentemente, o Coletivo Chama e, na falta de um nome melhor, a neoMPB...

Leonardo Lichote  Cada um desses conflitos que você cita atendia à lógica de um momento, né? Lógicas bem diversas entre si: a questão política (ditadura, levantes de inspiração comunista pelo mundo) e a contracultura no caso dos festivais; mudanças formais radicais no caso da bossa nova; a necessidade de matar o pai no caso do BRock... Mas ok, podemos amarrar tudo como uma oposição entre forças de manutenção e forças de mudança. Essa fricção é real e importante  bom que exista quem não quer mudança (e nos reafirma o valor daquilo que um dia foi novo e hoje é eterno), quem as quer (sem eles, estamos presos no Dia da Marmota) e quem leva o barco devagar durante o nevoeiro.  
Esse embate que você cita, entre os músicos do Coletivo Chama (vou além, ampliando para uma geração de jovens músicos e compositores de outros lugares, como Minas e São Paulo, que se identificam com a música do Coletivo Chama e não se enquadram na tal nova MPB, apesar de estarem também desenhando a música popular brasileira contemporânea) e os da nova MPB, me parece algo mais episódico que sistemático. Não sei se isso chegou a se configurar de forma tão clara.
Fiz uma reportagem chamada “Geração Fora do Tempo” (uma contradição, de certa forma) publicada em 2012 no Segundo Caderno, apresentando um grupo de músicos radicados no Rio com ligações estéticas, afetivas e históricas (um disco coletivo lançado anos antes). Com este título, a reportagem tanto enunciava a ambição desse grupo (de se dizer acima do tempo) quanto o seu descompasso com o que vinha sendo chamado de presente (a nova MPB). A carga de agressividade contra a nova MPB exposta naquela reportagem por alguns daqueles músicos que vieram a formar o Coletivo (ainda que não fosse o núcleo do texto, essa carga existia, e Romulo Fróes aparece ali como um símbolo disso, sendo classificado como um artista menor, instaurando claramente a oposição “eles versus nós”) não tinha tanto a ver com as diferenças estéticas. Até porque, hoje, quase todos esses artistas têm interesses musicais muito mais amplos do que poderiam fazer crer suas obras. Ou seja, ouvidos estão mais abertos  isso é uma impressão nítida  do que estavam nesses outros momentos de conflito que você mencionou (bossa nova, tropicália).
O que ocorreu ali foi a disputa pelo direito de construir a tal narrativa sobre essa geração. Havia naquele grupo de músicos um ressentimento indisfarçável por artistas como Romulo Fróes (e, num nível bem menos acentuado, por jornalistas como eu e Marcus Preto) estarem defendendo uma narrativa sobre a música brasileira contemporânea que, mais que os excluir como produtores de arte, não contemplava sua visão como analistas desse momento. Aquela agressividade surge daí  do desejo de também falar em nome de sua geração. Ou seja, as diferenças artísticas entre Romulo e Amud são muitas, mas não me parece que elas por si provocariam uma cisão  pelo contrário, elas poderiam até provocar um diálogo. O que pegou ali foi: “Tem uma galera se afirmando como voz única na interpretação da música brasileira hoje, e essa galera não me representa”. O ressentimento acumulado, a oportunidade rara de falar do assunto nos grandes cadernos culturais e as garrafas de vinho viradas durante a entrevista geraram o tom agressivo. Não era um simples Fla X Flu estético. Porque poucos meses depois daquilo Amud (conservador?) começou a produzir um disco com JR Tostoi (vanguardista?), lançado no fim de 2013. E não há traços de conflito no ótimo álbum.
Mas esses caras passaram a existir como grupo, como uma visão sobre a nova música brasileira  diversa da interpretação até então preponderante. Organizaram debates, criaram o Coletivo Chama, um programa de rádio, se articularam, enfim. Passaram a ocupar algum espaço e essa tensão com o suposto outro lado passou a ser latente. E teve outra explosão no ataque direto de Negro Leo a Thiago Amud  novamente, diferenças estéticas estavam na periferia da questão, o caso ali era político (e a estética como política, claro).
Enfim, não me parece interessante entender como fundamental uma divisão entre conservadores e vanguardistas dentro dessa geração. Normalmente, essa percepção é maniqueísta  e parte do desconhecimento do outro lado mesmo, das suas contradições. É luminoso ouvir Pedro Miranda (representante da geração samba da Lapa) falar informalmente, sem nenhuma teoria como apoio, de como sua visão do samba (e de muitos colegas seus) foi se alterando, crescendo, ganhando riquezas insuspeitas e  digo sem medo  inalcançáveis para quem não teve essa relação que esse grupo de pessoas teve com o gênero, de fascínio puro e dedicação exclusiva. Assim como é grandioso você ver essa cena (olha a palavra aí) fantástica de músicos experimentais cariocas anarquizando, com amor sobretudo, a já anárquica marchinha “A.B. Surdo”, de Noel Rosa e Lamartine Babo, no entrudo politizado que é o Baile Primitivo.

letícia novaes


BD – Esses conflitos, não importando de qual ordem, surgiram justamente aqui no Rio, onde as dificuldades de manutenção de uma cena independente são imensas. Há falta de palcos, falta de público e, mesmo que isto esteja aos poucos se desfazendo, de diálogo e colaboração entre os artistas. Seriam essas a causa da cena carioca não deslanchar?

Leonardo Lichote – O Rio tem o histórico de capital cultural brasileira do século XX, logo sustentava com firmeza o modelo de economia cultural do século XX  grandes corporações, a difusão de produtos culturais do centro para a periferia, a necessidade do êxodo de artistas para a cidade. Talvez por ter raízes tão arraigadas nessa “velha economia” haja a dificuldade de se erguer sobre as bases da economia cultural do século XXI  difusão descentralizada, maior segmentação, etc. Porque estamos falando de economia, né? Não de criação, inspiração  algo que nunca deixou de existir e nunca vai deixar de existir enquanto tiver gente trepando, amando e sofrendo. Quando você fala em deslanchar é de economia que está falando. A grana, pouca ou muita, tem que arrumar um jeito de circular, de escoar para a música, para viabilizar o crescimento dessa criação. Ou seja, para que ela chegue a mais gente (base e fim de quem faz música popular) e gere mais dinheiro para que o artista  e o empresário da casa de shows, o iluminador, o designer que faz a programação visual dos artistas, o fotógrafo  possa continuar sustentando essa criação.
Acontece que o Rio não é mais capital de nada (a frase é um exagero, claro, mas forço para a clareza do efeito). Quando era, não precisava se preocupar tanto com sua lógica de cidade, porque o público que movimentava a economia cultural do Rio era o país inteiro. E nessa de falar pro país inteiro, a elite cultural da cidade (tendo como contexto todo o processo escroto de concentração de renda, de sucateamento da educação pública, de governos seguidos que tratam a cidade dividindo seus moradores entre cidadãos de primeira e segunda classes) se encastelou em um feudo. Encolheu o Rio, em outras palavras  a cidade que importa passou a ser pequena: a Zona Sul e a Lapa.
Encolher o Rio é encolher o público, encolher as possibilidades, a riqueza das teias. É encolher as possibilidades de cidade, que eram dispensáveis quando a escala era nacional. Então, nessa última década, a tal cena carioca passou meio estrangulada – produzindo, mas não escoando ou sendo vista como poderia.
Aí tem um nó mais complicado por ser mais sutil, mas que parece dar sinais de que já começa a ser desatado. A lógica da exclusividade, do clube de privilegiados, a sensação de que se é o sal da terra, a nata do material humano da cidade  algo profundamente carioca, cultivado com carinho ao longo do século XX – joga contra o necessário aumento de público. E essa lógica aparece – mesmo que de forma inconsciente ou velada  no comportamento de artistas, empresários e jornalistas. A patrulha da “concessão ao mainstream”, apesar de anedótica, é real. As grandes emissoras de rádio e os veículos de massa como um todo – formas de expansão de público – são vistos como espaços não representativos dessa geração, que em geral reage a eles com discurso e postura rígidos, ignorando o mandamento de mestre Wilson das Neves: “Tem que ter suingue pra passar no buraco da agulha”.
O diálogo com as esferas populares – o além muros do feudo – são tímidos, muitas vezes não passam de simulação de diálogo. Temos tributo ao Raça Negra, que o tempo já se encarregou de tornar cult, mas ninguém ouve Bom Gosto, que acontece hoje. Não que ninguém tenha que ouvir nada – nem Beatles, nem Cartola, cada um tem seu caminho – ou que um tributo ao Raça Negra seja uma má ideia (eu particularmente sempre fui mais Molejo, mas questão de sintonia). É só um exemplo para ilustrar esse mecanismo.
Mas, como disse, esse nó começa a ser desatado. Se esse processo de encarecimento da cidade trouxe algo de bom foi – muito mais do que a articulação de protestos tipo Rio Surreal e Isoporzinho – a ampliação da cidade. Já era. Os preços não vão voltar. A Zona Sul sempre foi de quem pôde pagar por ela. Uma galera que podia, hoje não pode mais. E essa galera – jovem, bem educada, articulada, parte da elite cultural da cidade (elite não é palavrão, tampouco elogio, elite é elite) – está sendo obrigada a sair das regiões mais valorizadas do Rio, levando com ela as fronteiras da cidade. A Grande Tijuca, pela proximidade, parece ser a primeira a ser incorporada, mas essa dinâmica aponta para além dela. Temos o polo do Imperator (que sediou uma iniciativa que diz muito dessa nova realidade da cidade, o Méier Criativo – Seminário Economia Criativa, Redes e Desenvolvimento Local) e mesmo Jacarepaguá, que com sua confluência de subúrbio-CDD-Barra pode dar um caldo cultural interessante nos próximos anos.
Mas mesmo sem esse processo de ampliação de fronteiras, a tal cena carioca já vem demonstrando uma articulação interessante, baseada na consciência dessa crise da cidade, da necessidade de reinvenção. O crescimento da importância de espaços como Audio Rebel, o desenvolvimento de projetos coletivos, de encontros de artistas, tudo feito em proporções modestas, mas com ambição artística alta. Ao mesmo tempo, a abertura para essa geração de palcos tecnicamente melhores como o Circo Voador, a Miranda e o Oi Futuro... Tudo aponta – se não para um presente satisfatório – para um futuro à altura da tradição da cidade. O tal deslanchar que você fala na pergunta.

alice caymmi


BD – Diversos artistas, produtores e jornalistas acreditam que 2014 será o ano da cena independente carioca. Entretanto, há os que divergem desta opinião, tocando em um assunto bastante delicado: a suposta falta de qualidade da produção local, se comparada com o que vem sendo feito em São Paulo. Ao que parece, ainda há ranços de um antigo bairrismo, mesmo com todo o clima colaborativo que há entre as duas cidades...

Leonardo Lichote – O bairrismo que identifico hoje é mais um ressentimento carioca, muito difuso, que para mim parece uma resposta clara à atenção que a imprensa (a grande e a indie) vem dando nos últimos anos à cena paulistana – e não vem dando à cena do Rio. Do outro lado, o paulistano, há uma sensação de superioridade, também difusa, que vem do mesmo cenário pintado nos últimos anos e que é fruto de um ressentimento de longa data também, das décadas em que o Rio dava as cartas da vanguarda (pra usar, numa provocaçãozinha, um termo deliciosamente sequestrado por São Paulo). Mas tanto o ressentimento carioca quanto a sensação de superioridade paulistana são difusos, como disse, e não se sobrepõem ao desejo colaborativo que rola entre os dois lados.
Esse movimento paulistano, na real, é fruto de uma troca intensa com a cena carioca. Porque ele bebe das experiências de Los Hermanos, +2, depois se articula com Thalma de Freitas, Kassin, Nina Becker (a galera da Orquestra Imperial) e, por fim, serve como referência para quem está fazendo música no Rio hoje, tanto em termos estéticos quanto pela noção de viabilidade do independente (termo estranho esse “independente”, como Lucas Santtana abordou na entrevista dele pro Banda Desenhada, mas você entende do que estou falando) que os paulistanos trouxeram. Portanto, não compro essa tese do Fla-Flu não, apesar de saber que – como em qualquer relação de amor e admiração – há tensões mais ou menos veladas.
Se essa comparação entre a produção atual dos dois lados existe nesses termos que você fala, o Rio como inferior, acho que ela é uma bobagem. Fruto talvez da preguiça de quem a emite, a preguiça de sair do seu espaço de conforto – uma preguiça que não é exclusividade de quem é fã da Ivete Sangalo e não quer ouvir coisas novas, mas também de quem só quer ouvir a última novidade e não para pra prestar atenção em Ivete Sangalo ou Martinho da Vila. Ou quem para nos paulistas consagrados (dentro desse universo): Romulo Fróes, Rodrigo Campos, Tulipa Ruiz, Metá Metá, Criolo – um terreno que garante afinação com o novo e o conforto de não ter que sair dali – e não para pra ouvir Chinese Cookie Poets, César Lacerda, Ava [Rocha].
A cena do Rio está saudável em termos artísticos – há uma criatividade, uma força, que talvez seja melhor explicada pelo tesão de ser criativo e forte. O Tono tem proposto um diálogo leve e profundo com as tradições da música brasileira. Letuce (e os fundadores Lucas [Vasconcellos] e Letícia [Novaes] em seus momentos solo) cavou um espaço novo – repleto de inteligência e humor carioquíssimos, seja quando fluidos, seja quando intensos – para o pop. Há o trabalho sobre a canção crua que César Lacerda e Bruno Cosentino fazem. A consolidada geração da Orquestra Imperial, que une experiência com vibração de sangue novo – o espírito de diversão que faz com que suas profundas conquistas estéticas não pareçam tão evidentes, algo que pode se dizer da produção carioca como um todo. Os instrumentistas escolados no improviso experimental – que viceja na Audio Rebel e no Plano B [a casa fechou suas portas recentemente] – dialogando com o pop ganchudo. A proposta vanguardista e politizada de Negro Leo e Ava. O desejo de um-acorde-perfeito-maior-com-todo-mundo-podendo-brilhar-num-cântico de Mahmundi e Qinho. A potência de Alice Caymmi que explode em vários momentos e está cada vez mais próxima de concretizar seu destino grandioso. E a anarquia ambiciosa do Do Amor. E a ambição anárquica, doce e punk, de Iara Rennó. E vários outros, que esqueço de mencionar ou que simplesmente ainda não pude ouvir. Muita coisa muita. A vida tá rolando, o projeto de cidade olímpica (de Olimpo e de Olimpíadas) está esfacelando, there's a natural mystic blowing through the air [“Natural Mystic, Bob Marley], quem ficar atento saca, e pouco importa se é a primeira trombeta ou a última.

bruno cosentino


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