ultrapássara

fotos: daryan dornelles
Sim, Elis Regina, Gal Costa e Maria Bethânia sempre foram consideradas referências fundamentais para grande parte das cantoras deste país. Entretanto, em meados de 2000, com o desenvolvimento da cena independente paulistana, outro nome de igual importância começou a ganhar destaque: Ná Ozzetti.
A cantora iniciou sua carreira no final dos anos 70 ao ingressar no grupo Rumo, um dos principais representantes da vanguarda paulista. Com ele, Ná gravou seis discos, recentemente relançados em uma caixa, em edição especial. Com o seu primeiro disco solo “Ná Ozzetti” (Continental), de 1988, ganhou os prêmios Sharp e Lei Sarney, na categoria "Cantora Revelação". Seu segundo álbum, “Ná” (1994, Núcleo Contemporâneo), recebeu dois prêmios Sharp, na categoria Pop/Rock, “Melhor Disco” e “Melhor Arranjador” (Dante Ozzetti). Dois anos depois, a convite da gravadora Dabliú, lançou "Love Lee Rita", homenageando a cantora e compositora Rita Lee. Em 1999, pela Ná Records, lançou o elogiadíssimo “Estopim”, reforçando o elo com seus parceiros mais constantes: Luiz Tatit, seu irmão Dante Ozzetti, José Miguel Wisnik e Itamar Assumpção. No ano seguinte, participou do Festival da Música Brasileira, promovido pela TV Globo, ganhando o prêmio de melhor intérprete. Por conta disto, gravou no ano seguinte, pela Som Livre, o  disco “Show”.  Em 2005, em parceria com o pianista André Mehmari, lançou “Piano e Voz” (MDC), gravando posteriormente uma de suas apresentações para o DVD homônimo. Em “Balangandãs” (Ná Records/MCD), lançado em 2009, a cantora revisitou alguns clássicos do repertório de Carmen Miranda, ganhando com ele o 5º Prêmio Bravo! Prime de Cultura. Para comemorar seus 30 anos de carreira, Ná lançou, em 2011, seu disco mais autoral, “Meu Quintal”. Deste álbum, sua parceria com Luiz Tatit, “Equilíbrio”, foi indicada na categoria “Melhor Canção Brasileira” no Latin Grammy Awards. Este ano, após iniciar um produtivo diálogo com alguns nomes da nova cena paulistana, Ná lançou seu nono álbum, “Embalar” (Ná Records/Circus), contando com diversos colaboradores e parceiros, entre eles, Kiko Dinucci, Juçara Marçal e Tulipa Ruiz.
Influência perceptível no canto de Tulipa Ruiz, Andreia Dias, Paula Mirhan (Filarmônica de Pasárgada), Iara Rennó, Rhaissa Bittar, Mariana Degani (ex-Loungetude46) e outras cantoras da atual cena paulistana, Ná Ozzetti foi convidada para esta entrevista pelo Banda Desenhada. Após a sessão de fotos, que se realizou em uma tarde chuvosa na praia do Leme (RJ), fomos com a cantora a um bistrô, onde conversamos a respeito de sua carreira, influências, vanguarda paulista e a nova cena independente.

BD – “Embalar” parece dar continuidade aos seus antigos trabalhos, como “Estopim” e “Ná”. Era essa a intenção?

Ná Ozzetti – Sim. Eu vinha de alguns projetos de intérprete e após lançar “Meu Quintal”, só com composições inéditas, senti muita vontade de retomar algumas ideias que foram apresentadas em “Estopim”. Eu queria que o disco novo tivesse aquela mesma verve lírica nas composições e um arranjo orgânico. Tanto “Embalar” quanto “Estopim” são discos de banda. No “Estopim”, o Dante [Ozzetti] desenvolveu, através dos violões, toda a estrutura dos arranjos, depois a entregamos para a banda e fizemos o restante do trabalho. O que rege o “Estopim” são os violões, entende? Fiquei com muita vontade de retomar isso. Paralelamente, também senti vontade de trabalhar um repertório mais leve e dançante, como era o da turnê de “Balangandãs”. Os shows eram muito alegres e eu podia ficar cantando e dançando. Queria retomar esse espírito. Fiz quatro canções e o Dante mais quatro, todas com essa pegada mais rítmica. A partir daí, ele desenvolveu a estrutura dos arranjos e a levamos para a banda, onde trabalhamos coletivamente. Durante os ensaios e as gravações, a sonoridade do disco acabou ficando um pouco mais densa e pesada. Também incluímos três composições de artistas que eu tinha muita vontade de gravar: “A Lente do Homem”, do Manu Lafer; “Minha Voz”, da Déa Trancoso e “Lizete”, do Kiko [Dinucci] e Jonathan Silva...

BD – Essa última lembra bastante as músicas do Rumo...

Ná Ozzetti – Pois é! Mas eu acho bem Itamar! [Risos]. Talvez, por causa da minha voz, algumas pessoas falem que se parece com o Rumo. 


BD – Anteriormente, você lançou dois álbuns em que revisitava o repertório de duas grandes cantoras: Rita Lee e Carmen Miranda. Elas a influenciaram de alguma forma?

Ná Ozzetti – Sim. Esses dois trabalhos foram feitos por sugestão de gravadoras. Mas foram sugestões muito bem vindas. O da Rita, foi pela Dabliú, a convite do José Costa Netto. Por conta dos trinta anos de Mutantes. Eu sempre fui muito fã deles, cresci ouvindo os seus discos. Eu era da Pompeia, o bairro rock’n’roll da minha geração. O mesmo dos Mutantes. Eu os via constantemente passando de Jeep pela rua. Quando me tornei adolescente, a Rita já havia saído do grupo e comecei a ir aos seus shows. Eu adorava! Já o disco da Carmen Miranda, foi o Eduardo Muszkat, da MCD, que me sugeriu. Ele foi a um show em que cantei “Boneca de Piche“ [Ary Barroso/ Luiz Iglésias] e “Adeus Batucada” [Synval Silva]. Naquele dia mesmo, no camarim, ele me falou que acharia interessante se eu fizesse um trabalho com o repertório da Carmen. Eu levei um susto, porque a Rita tudo bem, afinal, ela é compositora, mas a Carmen... Eu achava muita responsabilidade fazer um trabalho em cima da obra de uma intérprete. Ela sempre foi um dos meus maiores ídolos, uma das minhas maiores referências. Sem sombra de dúvidas. Só aceitei porque achei que poderia contar através de suas canções e da minha interpretação o quanto ela me influenciou. Então, decidi realizar esse projeto por essa ótica, como se estivesse dizendo: “Olha, eu cheguei aqui e sou desse jeito por causa da Carmen”. Achei que valia a pena. Se não fosse por isso acharia muito difícil. Como é que você vai homenagear outra cantora?! É complicado. Se você não puder acrescentar nada a mais, se não extrair algo de diferente ou de novo, é melhor ouvir os discos originais, né? Por isso que, na hora que o Eduardo me convidou, eu levei um susto. Mas senti que ali havia uma história que eu realmente precisava contar. Tanto a Rita quanto Carmen me fascinam. Acho que elas têm muito em comum. Há algo de atriz nas duas. Algo meio clown. Você consegue construir personagens a partir de suas músicas. Essa verve teatral me atrai muito. 

BD – Falando em cantoras, vários críticos a consideram a maior cantora do país. Como você encara isso?

Ná Ozzetti - [Encabulada] Pois é... [Risos]. Sinceramente, fico muito constrangida quando leio uma coisa dessas. Porque eu não boto fé. Não acho que exista “a maior cantora”. Até porque, se você for analisar as grandes cantoras do país, verá que cada uma tem a sua natureza, tem a sua personalidade... Eu acredito que para você ser uma grande intérprete, muito mais do que uma grande voz, você precisa ter uma sensibilidade no cantar. E cada pessoa tem a sua forma de entender a música, de sentir e expressar o que está na canção. Então acho complexo dizer que uma cantora é a maior... Você pode dizer que essa ou aquela é uma grande cantora, mas o maior não existe. Pelo menos, pra mim, nunca existiu. [Risos]. É um peso... [Ainda bastante encabulada]. Eu realmente acho que estou bem longe de ser a maior. [Risos].


BD – Mas, sem dúvidas, você influenciou várias cantoras da nova geração, principalmente as paulistanas...

Ná Ozzetti – Mas será? Assim, que eu tenha conhecimento, que tenha lido, só a Tulipa [Ruiz]. Ela é filha do Luiz Chagas, que era guitarrista do Itamar. Depois que os seus pais se separaram, a sua mãe se mudou com os filhos e levou os discos do Rumo. Então ela cresceu ouvindo aquelas músicas. Acredito que tenha vindo daí a influência. Mas, agora, quanto às outras cantoras dessa geração, eu nunca soube de nada. [Risos]. Apesar de saber que existe uma afinidade muito grande entre essa turma e a vanguarda paulista. Quando ouvi os primeiros discos do Metá Metá, DonaZica e Passo Torto, fiquei com muita vontade de me aproximar deles. Percebi uma força... Até brinco, dizendo que essa é a minha nova turma. Eu realmente me sinto como parte disso, dessa estética. Tenho vibrado bastante com o que tenho visto, sabe? Com a produção dessa cena. Mas realmente não sei em que grau nós os influenciamos. Na verdade, eu não imaginava que eles eram tão ligados na gente. O próprio Kiko... No ano passado, eu o convidei para participar de um show. Eu ainda não o conhecia pessoalmente. Quando nos encontramos, soube que ele havia escutado bastante os meus discos e que conhecia muita coisa a meu respeito. Foi através dele que me aproximei do pessoal do Passo Torto. Senti que ali havia uma ligação muito forte com o trabalho da vanguarda. Mas eu jamais suspeitaria. É engraçado, porque essa geração foi surgindo e eu fiquei admirada com a sua produção. Não fazia ideia que eles me conheciam! Juro. Porque, na verdade, eu sou fã deles. O Kiko, por exemplo, eu acho maravilhoso! Quando soube que ele também nutria admiração pelo meu trabalho, eu fiquei muito feliz. Durante o processo de confecção do “Embalar” eu interagi com muitas pessoas e acabei convidando muitas delas para participar do disco. Estava com muita vontade de ouvir novos timbres, novas vozes. Eu adorei. O disco ganhou muito com isso. E quem não esteve presente nas gravações, esteve nas parcerias, como no caso da Tulipa. 

BD – O surgimento desta geração e a redescoberta da vanguarda paulista, soa, para muitos, como uma espécie de revanche em relação ao pop rock dos anos 80, por conta das dificuldades que vocês tiveram para divulgar seus trabalhos e manter as suas carreiras ao longo desses anos...

Ná Ozzetti - Realmente, no começo da década de 80, o mercado fonográfico voltou-se para os artistas com uma pegada mais pop rock. E nós em São Paulo não tínhamos isso. Estávamos preocupados em explorar a linguagem. Não tínhamos nenhum compromisso com o mercado. Havia uma liberdade enorme. Itamar, Rumo, Arrigo [Barnabé], Premê... Nós éramos muito esquisitos! [Risos]

BD – Interessante você usar essa palavra, “esquisito”, porque era assim que vocês eram pejorativamente classificados, não?

Ná Ozzetti – Havia uma estranheza em nosso trabalho. Uma estranheza intencional, de uma busca por uma nova linguagem. Particularmente, sempre achei que a nossa força estava nisso. Tanto é que, quando iniciei minha carreira solo, mantive essa identidade. Sempre foi muito importante para mim, enquanto artista, apontar para essa minha origem. Eu acredito nela. Não sabíamos como soávamos para as outras pessoas, mas tínhamos um público fiel, que entendia as nossas propostas. Então, nunca houve qualquer rixa entre nós e as bandas pop... até porque, interagíamos com os integrantes dos Titãs e do Ultraje A Rigor, por exemplo. Aliás, sempre achei os Titãs uma espécie de vanguarda paulista pop rock. Eles também faziam experimentos com a linguagem, só que se comunicavam de uma forma menos... esquisita! [Gargalhadas]. Sempre tive essa visão. As letras eram bem complexas, mas a banda conseguia fazer um produto que também dialogava com a cultura de massas, que tinha algum apelo comercial. Acho isso muito louvável... [Pensativa]. Sucesso é uma coisa tão complicada... Não dá pra prever. O sucesso vem de uma comunicação direta com o público. O público te acolhe, te absorve e começa a te seguir. Não há muita lógica. As grandes gravadoras tentam achar um padrão, analisando o mercado, mas há sempre algo que escapa ao seu controle, há sempre uma surpresa. E que bom, né?

BD – Por sinal, sabendo que hoje em dia quase não se vende mais CD, o que achou do lançamento da caixa com a discografia do Rumo? 

Ná Ozzetti – Nunca imaginei que isso fosse acontecer! Achava que os discos tinham ficado pra trás e que se alguém quisesse dar sequência, nós mesmos é que teríamos que arregaçar as mangas. Foi uma grande surpresa. Nós nos assustamos ao saber que ainda tínhamos público! É uma loucura o que acontece com o Rumo: Quando anunciamos uma apresentação, os ingressos esgotam rapidamente. Fizemos um pocket show em uma livraria que foi uma loucura! Só não fazemos mais porque é muito difícil conciliar as agendas de todos. 

BD – Uma das principais características da vanguarda foi a questão da linguagem, da construção de canções cujas melodias mais se assemelhavam à fala. Como foi o processo de construção dessa identidade?

Ná Ozzetti – O Luiz Tatit foi o mentor do Rumo. Apesar dele e do Itamar terem origens e objetivos diferentes, acabaram confeccionando trabalhos com algumas similaridades. O Luiz é um estudioso da canção, do desenvolvimento da canção. E, em suas pesquisas, quis radicalizar. Porque ele percebeu que as canções têm uma naturalidade própria que se aproxima da expressão falada, do coloquial. Então ele pegou essa ideia e foi além. Começou a compor e propôs ao Rumo um trabalho baseado na melodia da fala. Quando entrei para o Rumo, em 1979, o grupo já existia há uns quatro anos. Daí me falaram da proposta e achei realmente muito esquisito! [Risos]. Mas eu logo me inteirei e fiquei completamente fascinada com o seu método de trabalho! Eram dez integrantes e todos participavam do processo de criação. Já o Itamar tinha outras raízes, havia uma influência forte da música africana e do reggae. Tinha um puta suingue, um ritmo... Ele meio que anteviu o rap. Além disso, o Itamar se preocupava imensamente com a mensagem das suas canções. A primeira vez que tive contato com a sua obra, fiquei com a sensação de estar ouvindo um reggae cubista, fragmentado, feito de silêncios e falas. Era muito incrível! Eu me lembro de ter ido ao Lira Paulistana e visto o [disco] “Beleléu, Leléu, Eu”. Estava para ser lançado e um dos donos da Lira veio me falar: “Olha, foi a gente que produziu esse disco. Escuta que esse cara é muito bom”. Aí comprei o vinil e levei pra casa. Foi paixão à primeira vista. Era diferente de tudo o que estava sendo feito por aqui. Eu adorei aquilo. Não perdia um show do Itamar. Para mim, as suas apresentações eram verdadeiras aulas de música. Havia uma força, uma agressividade... Hoje, as pessoas já se acostumaram com essa estética, mas na época... Como ele chegou àquilo?! Mesmo com tudo o que se produziu posteriormente, ele ainda continua sendo inovador. Também havia o Arrigo. Ele vinha da música erudita e tinha uma influência forte do jazz. Até por conta dos músicos que tocavam com ele. Muitos eram integrantes da banda Metalurgia. Ele também flertava muito com o rock. Em 1980, lançou ”Clara Crocodilo”. Eu ainda não o conhecia. Fui ao show de lançamento e pirei! Nossa! Ele me pegou forte! Tanto o Arrigo quanto o Itamar tinham um lado muito teatral. Seus shows eram muito cênicos, com figurinos e personagens... E, bem, todos esses artistas eram da minha geração e eu estava apaixonada pelo que eles estavam produzindo. Vivi intensamente esse momento, esse começo do que chamam de vanguarda paulista. Mas não acho que foi um movimento. Acredito que tenha sido um período muito particular em que uma geração de artistas decidiu investir em uma linguagem própria, da forma mais livre possível, sem qualquer compromisso mercadológico e sem a preocupação com as consequências que as suas opções estéticas lhe trariam.


comentários - ultrapássara

  1. Anônimo :

    Ná Ozzette nasceu estrela, mulher guerreira que luta pela música brasileira! obrigado NÁ
    Celso Bras

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