efêmeros, perenes e antropofágicos


fred coelho | fotos: daryan dornelles




“O samba, a prontidão e outras bossas são nossas coisas, são coisas nossas”. A canção de Noel Rosa, lançada em 1932, retrata muito bem o espírito de sua época, em que o Estado buscava com certa urgência uma identidade para o país. O Brasil, então agrário e com a esmagadora maioria de sua população analfabeta, assistiu à busca desenfreada de seus intelectuais por elementos simbólicos capazes de efetivar um discurso nacionalista que traria em si o status de uma almejada modernidade. Com forte caráter populista, o Estado utilizou o rádio - o meio de comunicação em massa mais acessível da época – para criar uma identidade nacional, catapultando o samba carioca – até então restrito a um gueto étnico – como gênero máximo de nossa tradição popular. Assim, criou-se artificialmente um nacionalismo que, remetendo a mitos fundadores da nação, impôs uma representação identitária homogeneizante, voltada muito mais para a construção das bases de uma sociedade industrial do que para a representação dos múltiplos aspectos de um país fragmentado.
Desta forma, ao longo do século passado, a ideia de uma pátria de raízes fortes e imemoriais foi ganhando força e gerando atritos sempre que um novo “modismo” guiado por mãos “estrangeiras” invadia a nação e se fundia aos gêneros considerados nacionais. Assim foi com a bossa nova, a jovem guarda, o tropicalismo, o BRock e outros tantos. Se, por um lado, estes eram ovacionados pelo frescor que traziam à música brasileira, por outro, recebiam severas críticas de alas conservadoras – tanto de direita quanto de esquerda  – que acreditavam piamente na autenticidade de uma “estética brasileira”. Basta que nos lembremos da Passeata Contra a Guitarra Elétrica, realizada em 17 de julho de 1967, que contou com a presença de Elis Regina, Jair Rodrigues, Zé Keti, Geraldo Vandré, Edu Lobo, MPB-4 e até mesmo Gilberto Gil. Ou do conflito entre a intitulada MPB – vista como vanguardista, mas, paradoxalmente, defensora de certas tradições – e os tropicalistas. Aqui, cabe um parêntese: o termo MPB, surgido nos anos 1960 e utilizado para designar um gênero com forte influência da bossa nova e da música folclórica, ganhou tantos nuances ao longo das últimas décadas que, hoje, já extremamente distendido, chega a ser utilizado – talvez de forma um tanto inadequada - para designar qualquer música produzida no país. Esta elasticidade parece  ter atingido seu limite máximo com a aparição da neoMPB. Nascidos em um mundo digital, multicultural e globalizado, os artistas desta geração mostraram-se extremamente hábeis em transitar, com recursos próprios e de forma individualizada, por diversas identidades musicais sem se prender a nenhuma delas, sempre se defendendo de qualquer possível rótulo que viesse a restringi-los. Esta volatilidade gerou algum desconforto e abriu espaço para questionamentos: Como é possível, em tal contexto, construir uma identidade artística consistente? Ou melhor, qual o mérito em ter uma identidade artística tão coesa e rígida? Indo além, vale notar que a contestação de uma “genuína identidade musical brasileira” traz em si um cosmopolitismo que, em termos artísticos, é extremamente enriquecedor, mas que também é capaz de tornar cada vez mais malvistos os artistas que se fixam esteticamente a algum gênero “tradicional”. Assim, volta-se a se discutir a ideia da identidade ou “brasilidade” em nossa música. Música esta que, por sua própria condição histórica, traz uma infinidade de facetas e uma enorme capacidade apropriativa ou, como diriam alguns, antropofágica.
Prestes a completar dois anos ao  lado do Banda Desenhada, decidi me aprofundar nestas questões com o pesquisador e ensaísta carioca Fred Coelho. Professor de Literatura Brasileira e Artes Cênicas da PUC-Rio, Fred trabalhou como pesquisador do NUM (Núcleo de Estudos Musicais) e, desde 2009, vem atuando no NELIM (Núcleo de Estudos sobre Literatura e Música). Também publicou artigos em coletâneas e organizou, ao lado de Santuza Naves e Tatiana Bacal, o livro MPB - Entrevistas (Editora UFMG, 2005). Trabalhou em 2006 com pesquisador e publicou artigo no catálogo da exposição “Tropicalia - A Revolution in Brazilian Culture” (Cosac Naify, 2006). No ano seguinte, participou da pesquisa e  elaboração de conteúdo do site Tropicália. Fez também o conteúdo completo do site Nara Leão, lançado em 2012. Organizou três livros da série “Encontros”, da Azougue Editorial: “Tropicália” com Sérgio Cohn (2008), “Tom Jobim” com Daniel Caetano (2011) e “Silviano Santiago” (2011). Em 2012, foi curador ao lado de André Valias da exposição “GIL70”, dedicada à carreira de Gilberto Gil, realizada no Centro Cultural Correios (RJ) e no Itaú Cultural (SP).
Convocado para esta empreitada, Fred respondeu às minhas questões ao longo de alguns meses, em uma constante troca de e-mails. Durante o processo, discutimos e tentamos compreender melhor do que se trata essa tal neoMPB, quais são suas origens e suas particularidades.
Enfim, boa leitura!
Márcio Bulk.

descentralizado, mas nem tanto


Márcio Bulk – Já se falou bastante da importância da web 2.0 e de outras tantas ferramentas tecnológicas que favoreceram o desenvolvimento da atual cena independente brasileira. No entanto, mesmo existindo um clima de democratização, também percebo uma nova e forte hierarquia criada a partir de fatores econômicos e culturais que acaba privilegiando uma região em detrimento de outra. Por exemplo, longe de questionar o mérito da cena paulistana, é fato que ela possui mais visibilidade do que a de Belém ou mesmo a de Recife ou do Rio. Assim, me questiono se não haveria certo romantismo e ingenuidade nesse discurso igualitário...

Fred Coelho – As ferramentas tecnológicas democratizaram a produção, a circulação e o consumo relacionados à música, mas certamente não democratizaram o gosto. Ainda há sim uma hierarquização do gosto musical, ligada a um consenso sobre o que seja “qualidade. E isso vem desde a fundação da MPB nos anos 1960. Funciona como uma espécie de “filtro (cada vez menor, mas renitente) que Rio de Janeiro e São Paulo ainda exercem em relação às outras cenas musicais brasileiras. Certamente a guinada pernambucana com o manguebeat e o sucesso do tecnobrega paraense deram um equilíbrio um pouco maior a essa discussão nos últimos vinte anos. Mas, se pensarmos que a entrada em um mercado cultural mais robusto e em uma cultura de massa Global (de rede Globo, não de globalização!) ainda passa pelos dois grandes centros, o filtro ainda permanece. Sabemos também que apesar da web ter permitido uma explosão de bandas e músicos brasileiros independentes com relativo sucesso em seus nichos, o rádio ainda é o grande formador de sucessos e poucas dessas bandas e músicos que bombam na web e em shows para 2.000 pessoas ganham visibilidade para além disso. Mas a pergunta é: qual a real necessidade de fazer sucesso para as massas no dia de hoje? Ou o que é hoje fazer sucesso para as massas?

márcio bulk
Márcio Bulk – Sim, hoje uma parcela significativa dos artistas independentes consegue se manter sem necessariamente se apresentar em programas populares de TV ou em grandes casas de shows. No entanto, ainda há a necessidade do deslocamento para o Sudeste e, claro, a aprovação de jornalistas e críticos do eixo Rio-São Paulo. Vide os casos de Felipe Cordeiro, Karina Buhr, Marcia Castro e de bandas como Vanguart, Nação Zumbi e Cidadão Instigado. Além disso, alguns artistas independentes de Belém reclamam que apenas os que se emparelharam a uma proposta estética considerada “exótica” ou “brega” conseguem ganhar alguma visibilidade fora de sua região... 

Fred Coelho – Concordo com você. Há sim uma centralidade excessiva das coisas nos grandes centros do país e, sim, os nichos independentes muitas vezes são rotulados de fora pra dentro, prejudicando os músicos locais que não se adequam ao estilo – como o axé na Bahia. Mesmo assim, mesmo com margens ainda estreitas de autonomia, as cenas regionais hoje em dia são mais independentes do que já foram em outras épocas, por formarem seus próprios públicos. A cena paraense pode estar sofrendo com a captura da indústria de entretenimento carioca e paulista, mas eles tiveram que correr atrás de algo que ficou grande antes deles perceberem. O tecnobrega não é uma invenção do mercado de massas dos centros, mas, sim, uma criação coletiva da cena musical do Pará. Agora, voltando ao tema do sucesso, realmente para você chegar ao consumo massivo e nacional, ter agenda de shows com bons cachês, etc., ainda é necessário chegar ao topo desses espaços centrais. O que eu coloquei antes é qual a dimensão de sucesso que Marcia Castro e Vanguart querem atingir? Todo artista quer ser ouvido pelo número máximo de pessoas, mas o sucesso hoje é um assunto relativo do ponto de vista do alcance e da quantidade de pessoas. O número de views no YouTube pode ser um indicador de sucesso, mesmo que o artista em questão não seja conhecido pelo público ou faça shows.

marcia castro











RG


Márcio Bulk – Os músicos dessa geração têm uma dificuldade tremenda em assumir vínculos, rechaçando, na maioria das vezes, qualquer envolvimento com um gênero específico ou com seus pares. Isto me remete muito ao sociólogo Zygmunt Bauman, quando este salienta a necessidade que o homem de hoje tem de estar constantemente remodelando a sua identidade e rejeitando qualquer referência que venha fixá-lo em algo. Entretanto, como um artista pode desenvolver e impor seu estilo se a sua identidade tornou-se tão maleável?

Fred Coelho – Pergunta complexa. Não sou leitor de Bauman, mas entendo o ponto da fluidez de identidades que você se refere. Acho que as respostas, nesse caso, podem ser muitas. O processo de deslocamento das identidades históricas fixas que garantiam, de certa forma, as grandes narrativas do século XIX/XX (como alta/baixa cultura, Ocidente/Oriente, homem/mulher, branco/negro etc.) vazou diretamente para a dinâmica cultural. Pós-colonialismo, cosmopolitismo do pobre, multiculturalismo, hibridismo cultural, transculturas e muitas outras expressões que foram cristalizadas na virada dos séculos XX/XXI trazem ligação com esse processo de negação acerca de supostas essências – sejam elas nacionais, étnicas ou de classe social.
Na história da música, são constantes as apropriações dos mais variados gêneros por músicos que não trazem relações, digamos, “históricas com eles. Ingleses brancos expandiram para as massas do mundo o rythm and blues americano e o reggae jamaicano, dois ritmos de matriz negra. O jazz norte-americano fagocitou a bossa nova brasileira a ponto de poder malandramente reivindicar sua origem em certos contextos. Isso sem falar no rap e suas bases sampleadas desde Kraftwerk até Marcos Valle, popularizando em nível mundial uma cultura pop de apropriação, mixagem, recorte e colagem, deslocamento, rodízio, etc. 
No caso específico do Brasil então, nem se fala. É chover no molhado dizer que TODA a nossa matriz musical é mundializada. Sendo demasiado afirmativo, não há o menor espaço para qualquer discurso sobre pureza e raiz no Brasil desde os primeiros acordes coloniais que fizeram por aqui. Europeus, africanos e povos orientais foram acumulando camadas e mais camadas de músicas globais. Só existe música brasileira porque ela é feita no Brasil, e não porque ela é resultado de uma essência decorrente em “ser brasileiro. O que têm em comum pessoas como Noel Rosa, Clementina de Jesus, Eumir Deodato, Rosinha de Valença, Raul Seixas, Dolores Duran, Hermeto Pascoal, Dom Um Romão e Batatinha? Além de comporem músicas em português, suas trajetórias de vida são completamente distintas, não apresentam nenhuma essência central – muito menos musical. Claro que a história de uma cultura e as práticas redefinidoras de sua dinâmica através dos tempos acabam nos fornecendo um “modelo para entendermos o que é “brasileiro. Mas eu creio que as gerações atuais são as primeiras que podem fazer simplesmente, sem pudores ou negações, música no Brasil e não obrigatoriamente música brasileira. 
Não quero de jeito nenhum dar a entender que não exista uma brasilidade musical, pois é claro que temos características sonoras que nos diferem de outras por aí, mas como não sou músico formado, não entro nessa seara que um [José Miguel] Wisnik ou um [Luiz] Tatit entram com maestria. O que quero dizer é que após o boom da MPB dos anos 1960, gerado em plena disputa ideológica da guerra fria e em plena ascensão do radicalismo político no Brasil, a música popular brasileira se viu arremessada no debate mais amplo da sociedade pela conjunção de dois elementos fundamentais: a visibilidade massiva de seu produto (a canção popular) e a existência de uma geração genial de músicos-pensadores que transmitiram como poucos a perspectiva histórica do cidadão comum naquele período. O rock dos anos 1980 foi o rescaldo disso, uma política pelo viés juvenil. As bandas do chamado BRock conseguiram esvaziar a música brasileira de uma ideologia engajada ou deprimida em prol de um hedonismo criativo e solar. Era outra forma de pensar a relação entre música e política. “Filhos da revolução”. “Burgueses sem religião”. “Bichos Escrotos”. “Inúteis”. Era o nosso “the dream is over”  junto com o nosso “tomorrow never knows”. O rock desse período foi o fim da luta contra o "Inimigo Medo" que Torquato Neto identificava na ditadura e o começo do “Brasil, qual é o seu negócio?” que Cazuza pontuou brilhantemente.

thiago frança


Enfim, fui longe pra caceta só pra dizer que hoje, descolados de discursos políticos e imersos em um ambiente mundial de fluxos e trocas de sons, informações e cenas musicais, os artistas brasileiros não assumem gêneros fixos, pois seria um contrassenso com suas propostas musicais e com sua prática. Pegue por exemplo Marcelo Cabral e Thiago França, dois músicos paulistas. O baixo de Marcelo está com Criolo (de quem produziu o disco junto com Daniel Ganjaman), com Rodrigo Campos, com Romulo Fróes, com o Passo Torto, já esteve com Jeneci e muitos outros. Thiago toca com Criolo, além de tocar em momentos diferentes com Metá Metá, MarginalS, Rodrigo Campos e muitos outros. Como definir o gênero desses músicos? Eles são abertos, circulam entre bandas e trabalhos e podem acrescentar suas informações musicais colhidas justamente nessa circularidade saudável. Pensemos também em nomes de artistas de samba que saíram da Lapa e seus novos trabalhos. João Cavalcanti é do Casuarina, uma banda que se identifica com o samba em certa matriz mais tradicional (ao menos no repertório), e seu álbum solo traz outro perfil, produzido em um contexto pop. Já Teresa Cristina é uma das vozes mais respeitadas pela retomada do samba da Lapa nos anos 1990 com o grupo Semente e atualmente toca com Os Outros, cantando Roberto Carlos. Se eles dois propalassem discursos nacionalistas, de raiz ou de defesa de fronteiras em seu gênero “puro”, suas trajetórias hoje seriam “traições” e todo esse blábláblá que vemos até hoje. 
Por que se privar do deslocamento de identidades musicais se hoje em dia é justamente nesse deslocamento que se encontra a graça de levar um som, de compor, etc.?

criolo

tinhorão e antonio cicero


Márcio Bulk – Bem, assumindo de vez o meu papel de advogado do diabo, em sua “História da Música Popular Brasileira”, José Ramos Tinhorão comenta que o “tropicalismo propunha-se representar, em face da linguagem ‘universal’ do rock, o mesmo que a bossa nova representava em face da linguagem ‘universal’ do jazz”. Salientando que Caetano, Gil, Gal e demais artistas conquistaram a sua “modernidade pelo simples alinhamento às características do modelo importador de pacotes tecnológicos prontos para serem montados no país”. Ainda nesse clima “Tinhorão”, pode-se dizer que a produção cultural brasileira se construiu, na maioria das vezes, a partir de um olhar bastante passivo e de deslumbre pelo estrangeiro, em um claro complexo de subdesenvolvimento. Essa sintonia com o mundo globalizado, visto como sinônimo de modernidade, não causaria um empobrecimento da nossa cultura? Afinal, mesmo que, por exemplo, o rock brasileiro, o rock japonês e o rock polonês possuam especificidades, estes continuam atrelados a  um gênero homogeneizante. Partindo destas duas observações e sabendo que serei defenestrado depois disso, pode-se pensar que a neoMPB está estreitamente relacionada ao indie rock e a toda uma cena alternativa globalizada que pode acabar por engessá-la, não?

Fred Coelho – Bem, vamos por partes. Antes de tudo, quero dizer que, ao contrário de certo consenso – que eu mais jovem compartilhei fervorosamente – não sou daqueles que rejeitam a priori a obra de Tinhorão. Claro que, hoje em dia, soam ingênuas ou equivocadas algumas críticas dele escritas entre 1962-68 sobre a bossa nova e o tropicalismo, mas sua obra monumental é a salvação da pesquisa musical brasileira –  da pesquisa musical sobre as matrizes africana e portuguesa em geral, vide a penetração de seu trabalho em países como Portugal. 
Mas falando do tema da pergunta, e aí sim falamos da perspectiva datada de Tinhorão, não procede, ao meu ver, a ideia de que um movimento musical brasileiro em diálogo com outras informações musicais do mundo configurasse uma espécie de “ruptura” ou “contaminação” com a verdadeira música brasileira. E lembremos que, para Tinhorão, essa música “verdadeira” era condicionada pela classe social que a produzia, isto é, os mais pobres, negros e excluídos da cultura de massas. Sempre acreditei (como tantos outros que estudam música brasileira) que essa perspectiva equacionada a partir de um dentro e um fora no pensamento cultural de um país como o nosso é equivocada. Não somos consumidores passivos do “primeiro mundo”, mas, sim, uma civilização constituída historicamente no diálogo cultural com o mundo, desde Anchieta, passando por Gregório de Mattos, Machado de Assis, Lima Barreto, Villa-Lobos, Tarsila do Amaral, Oiticica, etc. Para mim, o motivo, como falei na resposta anterior, é que não podemos reivindicar verdades em uma música construída na diversidade de matrizes que circularam por aqui durante a colônia. O próprio Tinhorão nos mostra isso em trabalhos sensacionais. O samba urbano é fruto de camadas e mais camadas de músicas mundiais. O forró, o maracatu, o cateretê, a guitarrada, o choro, todos são híbridos musicais.

caetano veloso

Assim, importar “pacotes tecnológicos” não passa de uma argumentação camuflada por uma perspectiva ideológica da época. Lembremos, para falarmos do caso citado – o tropicalismo – que os jovens daquela geração no Brasil já tinham alguns modelos musicais existentes no mundo para se filiarem. Eles podiam já ir além da obrigação de, como disse Caetano Veloso na época, “folclorizar nosso subdesenvolvimento”. E outra: o grande salto tecnológico da sonoridade dita tropicalista foi criado por Claudio César Dias Baptista, irmão de Sérgio Dias e Arnaldo Baptista. Ele inventou pedais, amplificadores e instrumentos que adiantaram, em muito e de forma pioneira, algumas das pesquisas que [Jimmi] Hendrix faria mais tarde no seu trabalho. Assim, se ficarmos nesse exemplo, não houve importação necessariamente, mas apropriação criativa das informações mundiais que circulavam dentro da música jovem da época. Como querer fazer algo novo, fresco, inventivo em 1967 e não ouvir os Beatles, Stevie Wonder, Rolling Stones ou Janis Joplin? Só se você fosse um jovem desligado desse cotidiano, o que era quase impossível no Brasil daquele período. Ocorreu, enfim, para ficarmos no jargão que se convencionou, a boa e velha antropofagia. Além disso, participar do mundo, tocar rock ou criar um híbrido de canção popular com rock (“Alegria Alegria” e “Domingo no Parque”, por exemplo), era fazer parte de algo muito maior do que garantir a nossa raiz popular, seja lá o que isso for.
Para ir além, lembro que a ideia de “tecnologia” como algo que vem sempre de centros civilizados em direção a subdesenvolvidos é ultrapassada, datada no mínimo. Há tecnologia em qualquer povo, em qualquer época. Quem criou a tecnologia dos instrumentos de percussão do samba? Quem introduziu o banjo no samba? Quem adaptou a guitarra aos trios de frevo em Salvador? São muitas as possibilidades do debate tecnológico na música brasileira.  
E por fim, sobre a questão da cena atual ser uma cópia de uma cena indie internacional, caímos o mesmo lugar de discussão: qual cena independente no mundo não traz paralelismo? Como ser independente sem estar no contradiscurso do mainstream? Como experimentar sem refutar o paradigma da pureza? Novamente, desde os anos 1920 que o músico brasileiro pensa e faz música ouvindo o mundo. Se Nelson Cavaquinho não ouvia Billie Holyday em sua época (e eu não posso afirmar isso), certamente os lamentos do blues chegavam ao sambista de alguma forma, assim como as melodias de Guilherme de Brito trazem tons de valsas e fox-trotes românticos, não sei. Paul Gilroy [sociólogo inglês] e seu “Atlântico Negro” já nos mostrou isso: a circularidade das musicalidades nascidas nos países africanos circularam pelo mundo na diáspora do continente através do comércio de escravos. No século XX, essa diáspora ganha o mercado de massas e todos os ritmos pops por aí trazem uma base constituída a partir desse fato histórico. Reggae, rap, reggaton, funk, kuduro, afrobeat, drum and bass, e muitos sons ligados aos guetotechs compartilham essa herança. Ter essa perspectiva musical não é mais escolha, e sim condição para ser um músico contemporâneo. Pense no trabalho genial de BNegão, a diáspora africana sonora em pessoa, que transita em muitas cenas, discos, sons etc. Ou em uma banda como Metá Metá, cujo compositor Kiko Dinucci renova um afrosamba brasileiro e assume publicamente bandas como Slayer em suas referências musicais.

bnegão & seletores de frequência

A cena de hoje é impossível de ser engessada. Renova-se tão rápido que não damos conta e classificá-la em estilos, gêneros ou no jogo dentro/fora é muito complicado, eu acho. O lance, novamente, é apostar na fenda entre as fronteiras. Sem louvação ao lugar comum da “mistura”, mas entendendo que os caminhos estão abertos e a tecnologia, se antes era importada, hoje (e desde muito aliás) também é exportada. Basta se lembrar de Diplo e MIA pirando (e vendendo!) com nosso tambozão e da prolongada estadia de Kanye West no Rio recentemente, visitando estúdios de Funk no subúrbio carioca. Quem é o exportador de tecnologia? 

Márcio Bulk – O que você diz me remete ao discurso de Antonio Cicero [poeta, filósofo e ensaísta] quando ele fala que “a  MPB não tem limites preestabelecidos, pois não tem essência. Talvez aí esteja a resposta para todas estas questões que levantamos.

Fred Coelho - Exato, estou com Cicero. Essência é o primeiro passo para o fim da invenção. E sem invenção, a música torna-se mera repetição da média.

nina becker




neobalzaquianos


Márcio Bulk – A princípio, era de se esperar que uma nova geração fosse constituída por adolescentes ou jovens adultos. Entretanto, a neoMPB é basicamente composta por artistas com idade próxima aos trinta, vide Tulipa Ruiz, Karina Buhr, Kiko Dinucci, Nina Becker, Kassin e tantos outros. Afinal, onde está a energia juvenil e revolucionária na música brasileira? 

Fred Coelho –  Bem, mas os 50 anos são os novos 30,não é? Hahahahaha! Falando sério, acho que isso é resultado de um processo de maturação das pessoas. Temos muitas bandas jovens que fazem sucesso, como o caso das bandas coloridas – Strike, Restart – , temos as bandas emocore, as bandas de rap pop ou caras como Emicida e seus parceiros, a galera da cena experimental como Bemônio, Burro Morto e outras, toda a cena funkeira (que é bem jovem), etc. Além de milhares de moleques tocando em estúdios por aí. Jovens na música é que o não falta. 
O lance é que chegar a uma qualidade de produção, composição, execução e alcance massivo é para poucos, ainda mais tão jovens. Bandas lançam trabalhos que não chegam até nós, sem dúvida, e certamente são formadas por muitos jovens, claro. 
A energia juvenil, acredite, está com essa galera de 30/40 que você citou na pergunta. Uma geração que “acumulando raiva e rancor”, como diriam os Titãs, explodiu em sons e ideias que ainda estão –  e vão por muito tempo –  render papos como esses que estamos tendo. Karina Buhr e Dinucci, por exemplo, são dois que garantem esse gás performático. 
A energia está onde, aliás? Na contundência das performances? No inconformismo de letras? Na transgressão da mediocridade classe média? Se for algum desses pontos, acho que todos entre 30/40 estão dando conta disso muito bem…

kiko dinucci

em progresso


Márcio Bulk – Para mim, uma das particularidades desta geração é a  ideia da “obra em progresso”. As músicas, EPs e discos são, em sua grande maioria, lançados virtualmente e alguns de forma bastante amadora ou artesanal. Assim, esses trabalhos parecem mais um instantâneo do artista em seu processo de criação do que obras necessariamente fechadas, com produtores e toda uma infraestrutura relacionada à imagem e ao acabamento. Isto pode provocar um desdobramento em outras áreas diretamente envolvidas com a sua produção, como o design e o audiovisual, o que geraria uma estética bastante peculiar, não?

Fred Coelho - Concordo com você sobre a “obra em progresso” ao pensar nesses trabalhos que são feitos "por partes". E concordo também com o fato de lançamentos serem às vezes precipitados. Hoje em dia muitas vezes os primeiros discos são as antigas fitas-demos, que todos ouviam, mas sabiam que tinham sido feitas na raça, em condições muito inferiores de gravação, masterização, etc. Atualmente, o cartão de apresentação de bandas são CDs. Ou soundclouds, ou vídeos no YouTube. São muitos os caminhos, não é? Nem sempre esse primeiro trabalho funciona, mas já conta na discografia! E concordo também com a questão do design, da embalagem visual e de tudo que, hoje em dia, praticamente caminha junto com uma ideia de “disco” de forma inovadora. Em certo sentido, a perda dessa dimensão com o dito fim do vinil foi compensada com outras formas de se pensar os produtos fotográficos. E, afinal, o vinil não só não acabou como voltou com força total hoje em dia. Até as bandas mais novas já tem seus primeiros discos lançados em vinil.

Márcio Bulk – Existe um pouco de saudosismo hoje em dia, não é? Vinis, câmeras analógicas, os hipsters e a sua estética retrô...  Mesmo que superficialmente, isto parece ser uma característica dessa geração... 

Fred Coelho – Essa característica de ativar o passado no tempo presente vai além de gerações, mas certamente, hoje em dia, com a velocidade da mudança tecnológica, esse passado ficou cada vez mais recente. Vivemos um presente entulhado de passado. É o que diz o crítico inglês Simon Reynolds no seu livro “Retromania”, um clássico dos nossos tempos sobre esse tema. Mas sobre o vinil especificamente, acho que seu retorno, ou de certa forma, sua permanência, é algo mais ligado a um fetiche musical do que a uma onda nostálgica. Ainda se afirma que o som do vinil é melhor, além de ser um belíssimo objeto. Para mim, um cidadão do século XX, o vinil ainda é a parada. Mesmo que 90% da música que escuto seja digital, não deixo de comprar e ouvir vinis. A volta dos lançamentos e os relançamentos, todos maravilhosos, só tem um problema: tornaram-se caríssimos, o produto mais caro da venda de música.

marcelo jeneci


underground versus mainstream


Márcio Bulk – A neoMPB está inserida em um nicho bem específico. Não soa estranho que uma geração extremamente heterogênea viva, em sua grande maioria, à margem das rádios e da TV, em uma circulação tão limitada? Além disso, foi criada uma enorme tensão entre a cena independente e o mainstream, onde a primeira, com pouca visibilidade, recebe apoio dos críticos e formadores de opinião, enquanto o segundo, visto com maus olhos por parte da imprensa, tem ao seu lado uma máquina de divulgação absurdamente persuasiva que o leva a um grau de popularidade inimaginável para os artistas independentes. Estes dois grupos, mesmo que não intencionalmente, formam um cenário bastante atípico dentro da música popular brasileira, não acha?

Fred Coelho – A divisão entre uma música comercial, que toca nas rádios e é consumida de forma massiva, e uma música não-comercial, mais sofisticada e com menos público é eterna, né? Assim como também é eterno no nosso país um (péssimo) hábito da crítica (universitária, muitas vezes, mas não apenas) em refutar tudo que seja popular no âmbito da cultura de massas. Logo, é claro que, nesta perspectiva, Michel Teló, Ana Carolina, o funk carioca e Parangolé serão ruins e acusados de fazerem trabalhos de baixa qualidade. Já no campo contrário, temos bandas e artistas excelentes e louvados pela crítica, com Hurtmold, Guinga, Psilosamples ou Passo Torto, porém eles permanecem desconhecidos fora do meio musical, digamos, “sofisticado”. Isso não tem jeito, pois o consumo da música é cada vez mais recortado e, por isso, redundante. É tamanha a oferta que geralmente o público médio, que ouve música sem interesses além da fruição, se apega mais e repetidamente ao que já gosta.
Creio que a diferença de hoje em dia seja certa sensação de que tem espaço para todo mundo. Não o mesmo espaço, não com o mesmo retorno financeiro, mas já é diferente do passado em que ou era o mainstream ou era nada. Ou tocava na rádio ou circulava apenas no boca a boca e nas fitas cassetes. Vale lembrar aos mais jovens que gravar um disco no início dos anos 1990 era algo impensável se você não tivesse algum respaldo comercial, seja de público, seja de patrocínio ou o que for.
A chamada neoMPB (tenho a tendência de achar que a geração atual faz música no Brasil e não mais MPB) tem uma capilaridade bem forte hoje em dia, pois diversifica as atuações, além de estarem (muitos deles) sempre no palco. Veja o caso do Criolo. Por que ele foi “escolhido” para ser o cara do sucesso nas rádios, na crítica e no público? Pela qualidade da sua música, não é? Mas o que faz entender que ele ficou quase quinze anos sem destaque nenhum? É complicado explicar esses saltos. E é claro que sabemos e temos de entender que hoje ele tem uma rede de profissionais competentes ao seu redor e aí já virou um grande lance, que movimenta grana, expectativas futuras, internacionalização da carreira, agendas lotadas, etc. Mas isso tudo foi uma conquista dele. Idem com o Marcelo Jeneci, que conseguiu criar canções que atingiram diretamente as pessoas, sem precisar da grande mídia, até que ele virou um cara que “todos amam”, da netinha até a vovó, com músicas executadas em casamentos etc. Então, de certa forma, eles fazem sucesso nas rádios, mas não deixam de ser caras “de fora do esquema”. Não sei se me fiz entender. Acho que quando alguém dessa geração chega “lá” hoje em dia (rádios, novela, televisão), é muito mais por uma conquista do que por esquemas de gravadora, quando as bandas tornavam-se produtos de departamentos de marketing, jabás e afins.

lucas santtana

Mas também temos o outro lado, que são caras como Curumin ou Lucas Santtana, que fazem canções que poderiam estar em qualquer novela, canções que poderiam tocar tranquilamente em qualquer rádio popular (músicas como “Passarinho” do primeiro ou “Essa Noite” do segundo) mas não acontecem assim. Não há grande explicação além de confirmarmos a existência de uma parede de interesses. É estranho. Tulipa [Ruiz], por exemplo, caiu mais no gosto, digamos “popular” no Brasil do que a CéU, mas a segunda é mais famosa lá fora. Igual ao Lucas, que fez uma série respeitável de shows no exterior durante os últimos seis meses, mesmo sem tocar por aqui nas rádios… E na outra ponta, penso em um Carlinhos Brown, que é famoso, roda o mundo, tocou sem parar em outras épocas com os Tribalistas e a Timbalada, mas seus trabalhos solos não deram em nada de considerável no Brasil do ponto de vista do público. Isso sem falar nos Racionais, que lotam qualquer show e vendem os tubos em CDs e DVDs sem rádio e sem televisão (só com uma aparição ou outra na MTV). Sem querer ser repetitivo, mas já sendo, os caminhos são diversos e a ideia de SUCESSO mudou muito. Claro que para se ter sucesso popular, para que as pessoas assoviem e cantem sua música nas ruas, tem que passar pelas rádios ou pela TV. Ou fazer um funk genial como “Ah Lelek Lek Lek Lek Lek”. Aí, não tem erro!

Márcio Bulk – Acho que a situação é um pouco mais tensa. Alguns artistas têm um discurso muito veemente e combativo em relação a ser independente, reconhecendo ali um status e rechaçando o mainstream de forma categórica. Só que, na prática, como você mesmo disse, alguns circulam com certa frequência em rádios e em alguns programas de TV. Não haveria alguma discrepância nisso? 

Fred Coelho – Bem, se o artista ainda apostar nessa divisão estática do mundo entre um mainstream “impuro” e “aproveitador” versus uma cena independente “pura” e “mais legítima”, aí sem dúvida há uma discrepância nas suas atitudes. O lance é pensar como estabelecer essa fronteira no mundo de hoje. Novamente, é claro que sabemos exatamente quem está nas paradas de sucesso comprando jatinhos e quem mal lota casas de 200 lugares em alguns lugares. Só que não consigo mais encontrar espaço para um status engajado de qualquer artista pelo fato de ser um artista independente. Com o fim das gravadoras, praticamente todo mundo é independente, né? Fora alguns poucos medalhões ou sucessos absolutos de público e venda, todos estão construindo seus próprios caminhos comerciais. Lembremos, ainda sobre essa divisão, que o Fora do Eixo, modelo bem-sucedido de organização coletiva de bandas independentes é visto hoje em dia como o mainstream por bandas que não fazem parte do coletivo e de suas iniciativas. 
Ser independente, fazer sua carreira fora da Globo ou dos jornais, não significa o anonimato. Seu vídeo no YouTube vai bombar em milhares de views, um circuito mesmo que precário de shows será criado para você, o Facebook ajuda na sua divulgação, etc. A Banda Mais Bonita da Cidade é um exemplo. Não atingiu a fama massiva, mas ampliou muito o seu raio de ação por causa de um vídeo. Outro exemplo que me ocorreu agora para pensarmos como esse debate mudou são os Los Hermanos. Por causa de uma música menor em seu repertório a banda independente foi catapultada para o estrelato nacional. Mesmo assim, nunca foi a banda do Faustão no domingo ou do programa da Hebe. Não estavam nas capas das revistas de celebridades nem nas colunas sociais. De certa forma, é outro modelo de sucesso, não sei. Enfim, entendo que ainda exista claramente uma divisão entre o mercado, o mainstream, a máquina do jába, os esquemas do chamado “sistema” e as cenas independentes, sem apoio, em condições precárias, etc. Só acho que hoje em dia ser independente não impede que se faça algum tipo de sucesso, ou outras formas de se estabelecer e ser reconhecido pelo valor do seu trabalho. E sem se “vender ao mercado” ou se tornar “traidor do movimento”.

marcelo camelo

tropicalismo


Márcio Bulk – Por mais que seja vista por alguns críticos como uma geração culturalmente elitista e “hype”,  a neoMPB é uma das mais permissivas ao lidar com a diversidade dos gêneros musicais. Entretanto, em inúmeros momentos, parece que o resultado de seus trabalhos não exibe a tensão natural do trânsito por estas esferas, como se via claramente no tropicalismo. Este, por sinal, é citado como referência por boa parte dos novos artistas. Guardadas as devidas proporções, você consegue detectar na cena atual o discurso provocativo ou mesmo uma reflexão mais profunda a cerca da cultura brasileira como se via de forma tão clara no movimento tropicalista?

Fred Coelho – Não. E não porque hoje é pior, mas porque tudo mudou. A crítica social do tropicalismo era inerente ao seu momento histórico com tudo que acontecia na história da música brasileira, na arte mundial e na política do país. Seus compositores eram jovens formados com informações culturais de ponta na época e eram vistos pelos engajados de plantão como hypes e elitistas também. Ao sintetizar em canções o desafio de pensar uma modernidade mundializada no terceiro mundo, tropical e universal, eles necessariamente provocavam velhos valores e tradições. A transgressão musical NÃO PODERIA EXISTIR sem a transgressão cultural. A grande sacada dos tropicalistas foi entender – como já tinham entendido os gênios Carmen Miranda e Luiz Gonzaga – que música e imagem, na cultura de massas, caminham juntas. O tropicalismo propôs uma NOVA IMAGEM para o Brasil, aquilo que em outra ponta Hélio Oiticica chamou de “Tropicália”. Canção, performance, roupas, instrumentos, capas de disco, cenários, tudo estava ligado para causar um impacto completo. Como dizia Caetano, a ideia era explodir o “sol, nos cinco sentidos“. “nada no bolso ou nas mãos”. Tudo no mundo.

gilberto gil
Hoje, a fragmentação identitária é também uma fragmentação da narrativa sobre a nossa vida e também, claro, sobre nossa música. Reivindicar um lugar específico para fronteiras entre gêneros é possível, porém engessa o artista justamente no que hoje existe de melhor, isto é, o acesso irrestrito ao mundo, a todas as músicas, de todos os tempos. Quando o tropicalismo surgiu, tínhamos um cardápio bem restrito de gêneros para a canção popular. Samba, samba-canção, bolero, tango, baião, rock, balada, bossa nova, frevo, etc. A genialidade da geração dos anos 1960 foi produzir o hibridismo dessas matrizes populares com outras vertentes internacionais, ou até mesmo nas misturas possíveis entre elas. “Bim Bom”, o baião minimalista de João Gilberto afinal, é o lado B do compacto com “Chega de Saudade”, não é? Funda a bossa nova sem abrir mão de reinventar a tradição. 
Atualmente, quando alguém pensa uma melodia, um acorde, um riff ou uma base para fazer uma canção, a variedade labiríntica de gêneros e subgêneros é tão abissal que não vejo muito o porquê de definir o que está sendo feito. E nem vejo porque ainda ativarem nas suas produções a herança tropicalista, já que a operação tropicalista era a operação musical de um período. Como ela foi a primeira a trabalhar com essa permissividade de influências no tecido da canção popular brasileira, é redundante reafirmarmos sua presença entre nós justamente porque ela é eterna. Toda a música pop brasileira se tornou tropicalista. E o tropicalismo virou tudo que foi feito depois dele nesse campo. Ele foi a síntese que se tornou tese. Ou a exceção que virou regra.

Márcio Bulk – Então não há como fugir dos cânones tropicalistas? Sinto que a única geração que fez frente a eles foi a do BRock, mesmo que esta tenha ido em direção a um som ainda mais pop e globalizado.

Fred Coelho – Retomando o que disse acima, nada mais tropicalista do que fazer uma banda de pop rock  cantar a vida local das ruas da Zona Sul carioca a partir de bases como o The Police ou o The Smiths. Os anos 1980, apesar de chamarmos de BRock, reforçaram o lugar do cancioneiro e do cancionista. Herbert Vianna, Cazuza e Renato Russo tornaram-se compositores de MPB, de certa forma. Gravados por todos os medalhões, cultuados pela sua capacidade de criar canções que permeiam a memória coletiva, etc. Assim, mesmo que não goste de apostar em continuidades históricas evolucionistas – a vida segue por espasmos, e não por capítulos – , só foi possível a um jovem de Brasília montar uma banda de rock para tocar The Clash e P.I.L. porque jovens dos anos 70 seguiram o processo de entender o rock internacional como um dado natural de sua musicalidade.

gal costa


BRock, manguebeat, etc. e tal


Márcio Bulk – Por sinal, em outra entrevista, você apontou o BRock como um possível momento de origem da neoMPB. Confesso que tenho um pouco de dificuldades em relacionar, por exemplo, Kid Abelha, Lulu Santos e Paralamas do Sucesso com a geração atual.

Fred Coelho – Bem, a resposta que dei na entrevista que você citou foi um pouco nessa linha. Toda origem é uma invenção, um corte aleatório na história. Assim, aponto o fato da geração dos anos 1980, como a de hoje, ter tido que pensar sua musicalidade a partir de matrizes muito mais amplas do que a geração dos anos 1960. Os Paralamas do Sucesso, quando foram fazer seu segundo disco, já tinham além da MPB e do rock anglo-saxão, toda a informação do reggae jamaicano, filtrado pela leitura de Gilberto Gil e dos originais que circulavam por aqui. Além disso, eles tinham toda a informação de uma soul music internacional e brasileira, traduzida por Tim Maia. Ou outras informações sonoras para arranjos de metais, fruto da audição de bandas como a Banda Black Rio, ou de um disco genial como “Maravilhas Contemporâneas”, de Luiz Melodia. Paula Toller já conhecia as cantoras do pós-punk como Debbie Harry ou Siouxsie Sioux e podia afirmar que Annie Lennox era tão importante em sua formação quanto Dolores Duran. Além disso, Leoni conhecia as bandas do pop que usavam sintetizadores, batidas eletrônicas, bandas como Human League, Blondie, etc. O Barão Vermelho podia dizer que suas influências eram Rolling Stones e Nelson Cavaquinho e ninguém mais os atacaria como atacaram Caetano ao dizer que Beatles era tão importante quanto Noel Rosa. É por isso que me remeto aos anos 1980 para falar da liberdade estética que existe hoje na música brasileira. 
Mas, é claro, se ouvirmos Criolo, Curumin, Thiago Pethit, Lucas Santtana, Cícero, Letuce, Romulo Fróes, Luisa Maita, Rodrigo Campos, Meta Metá, Tono, Do Amor, Jeneci, Kassin, Domenico, Cascadura, Nina Becker, Marcia Castro, Ronei Jorge e tantos outros, percebemos que independente dos gêneros, influências, estilos e misturas, o que os une, sem dúvida, é o poder da canção. É a canção popular e sua força absoluta dentre os brasileiros que nos faz falar de uma neoMPB, como você está chamando na nossa conversa, e não de um neoBRock.

thiago pethit


Marcio Bulk – Você também coloca o manguebeat como um dos pontos de partida para se entender a música contemporânea. Outros se referem ao projeto +2 ou às bandas como Mulheres Q Dizem Sim e Acabou La Tequila. O que haveria de tão importante na cena pernambucana que ainda se faz sentir a sua reverberação nos dias de hoje?

Fred Coelho – A cena pernambucana dos anos 1990 fez algo quando todo mundo estava lamentando a morte da bezerra. Quando estava todo mundo no Sudeste (com raras exceções, sempre) dizendo que tudo estava acabando – gravadoras, dinheiro, rádios, vinil etc. – lá em Recife eles foram à luta e inventaram um modo de produção e uma cena independente que deram certo. Claro que para isso dar certo, contaram com uma safra de músicos e compositores geniais, principalmente reunida em torno de cinco bandas que, de certa forma, estão até hoje dando frutos: Nação Zumbi (com Chico Science), Mundo Livre S.A., Orquestra Santa Massa (Dolores), Eddie e Mestre Ambrósio, que segue sua linha sonora na carreira solo de Siba. Eram discos com uma nova informação musical. Nunca a base rural/folclórica da música pernambucana havia turbinado tão bem outras sonoridades. Apresentaram também um novo discurso que sabia utilizar a precariedade como potência transformadora. E lembremos que eles não foram os primeiros a introduzir guitarra ou rock no maracatu, pois Alceu Valença e Zé Ramalho, juntos, fizeram isso nos anos 1970 (basta ouvir o fantástico disco “Vivo”, de Alceu). O que eles fizeram foi trazer o futuro digital para o Brasil. Colocar a antena parabólica no lugar da raiz foi extremamente revolucionário e salutar. Adotaram o discurso do “glocal”, isto é, o global-local, Pernambuco para o mundo. Creio que depois dessa geração, os trabalhos posteriores não precisaram mais afirmar uma autonomia das novas gerações músicas brasileiras frente ao seu passado. Mas, claro, como nem tudo são flores, esse sucesso do manguebeat deve ter se tornado um fardo para as bandas mais novas de Pernambuco, pois se criou uma expectativa de “repetição de fórmula” para eles, né? Mesmo que uma banda como Mombojó mantenha acesa a autonomia musical da cena recifense. 
Sua reverberação até o presente, portanto, se dá pela introdução definitiva do cosmopolitismo como discurso de nossa música. Falar do Brasil, mas do Brasil para fora, e não para dentro. O manguebeat foi a confirmação de que o caminho sonoro diversificado não tinha volta para a canção brasileira. Para Chico Sciense, Mestre Salustiano e Sepultura eram duas informações musicais com a mesma potência e interesse. Rap e embolada eram linguagens que dialogavam, sem hierarquias, sem precisar fazer disso uma “mistura”.

marcelo d2
E para arrematar, entendo também que se encontre uma origem dos trabalhos de hoje em iniciativas como o +2, o Acabou La Tequila e os Mulheres Q Dizem Sim, até pelos desdobramentos dos trabalhos de seus participantes, desdobramentos estes que chegaram até a sonoridade dos Los Hermanos, na formação de uma banda como a Cê, de Caetano Veloso, ou na cornucópia sonora dos grandes trabalhos de Kassin e Domenico. Mas temos que lembrar que, nesse mesmo período, o que se espalhava pelo país eram bandas e sonoridades um pouco mais pops e massivas, como o rap do Planet Hemp, o reggae do Rappa e do Cidade Negra, o funk via DJ Marlboro, a axé music, o forrocore dos Raimundos, a revolução dos Racionais MC’s e outras frentes que não lembrei aqui, mas que foram talvez mais definitivas do que as bandas cariocas como as que você fala na pergunta. O que fica é a velha questão: como medir a influência, como entender o que gerou a origem da chamada neoMPB, já que ela é um amálgama de transformações tecnológicas, mercadológicas e produtivas, um labirinto de variações temáticas e formais ao redor do gênero canção, uma nova geração que pensa seu ofício de forma crítica e ativa? Creio que não há uma banda ou um disco que tenha fundado ou iniciado o que vemos hoje, mas sim esses processos, idas e vindas que a música brasileira viveu nos últimos trinta anos. Aí sim, eu creio, entenderemos algumas pistas do que estamos vendo – e ouvindo! – hoje em dia.

comentários - efêmeros, perenes e antropofágicos

  1. Excelente entrevista, muitíssimo lúcidas as análises do Fred. Parabéns!

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