a frase, o conceito, o enredo, o verso


fotos: daryan dornelles




Desde o século passado, a música popular brasileira vem desenvolvendo um intenso diálogo com a literatura nacional. Poetas como Carlos Drummond de Andrade e Manuel Bandeira tiveram alguns de seus trabalhos adaptados por importantes nomes da MPB e tornou-se notória a parceria do escritor Jorge Amado com o compositor e cantor Dorival Caymmi. Entretanto, foi somente no final dos anos 50, com o aparecimento da bossa nova, que esta conversação se intensificou. O poeta Vinicius de Moraes, unindo-se a Tom Jobim, foi responsável por estreitar esses elos, produzindo uma obra que ainda hoje é referência para boa parte dos compositores do país.
Tomando para si o espírito modernizador bossanovista, o tropicalismo trouxe para o seu ideário a antropofagia de Oswald de Andrade e aproximou-se dos poetas concretos. Não à toa, também estiveram presentes direta ou indiretamente no movimento o escritor e cineasta José Agripino de Paula e os poetas Torquato Neto, Capinan e Waly Salomão. Caetano Veloso - um dos principais articuladores do tropicalismo - tornou-se parceiro do poeta e ensaísta Ferreira Gullar, com quem compôs “Onde Andarás?”. Mais tarde, o músico baiano veio a musicar “Circuladô de Fulô”, poema de Haroldo de Campos, e o clássico "Navio Negreiro" de Castro Alves. Ferreira Gullar ainda teve dois de seus poemas musicados por Fagner. Este se dedicou também a adaptar alguns trabalhos de Cecília Meirelles, Fernando Pessoa e Florbela Espanca. Já Chico Buarque, que em 1966 lançou em disco uma adaptação para “Morte e Vida Severina”, de João Cabral de Melo Neto, voltou-se mais à frente à carreira de escritor, publicando em 1991 “Estorvo”, seu primeiro romance. Fazendo o caminho inverso, antes de tornar-se um músico cultuado, Jorge Mautner se enveredou pela literatura, ganhando o Prêmio Jabuti pelo livro “Deus da Chuva e da Morte” (1962). Ainda nos anos 60, o poeta Cacaso passou a desenvolver uma sólida carreira de letrista, colaborando com inúmeros artistas, como Edu Lobo, Tom Jobim, Sueli Costa, Joyce, Toninho Horta, Francis Hime e João Donato. Mais à frente, oriundos da vanguarda paulista, os músicos e ensaístas Luiz Tatit e José Miguel Wisnik aprofundaram as ligações entre a música popular e a literatura ao publicarem diversos textos a respeito desse tema. Até mesmo o BRock, com o seu forte acento pop, não deixou de dar continuidade a esse diálogo: Cazuza e Frejat musicaram trecho de “Água Viva”, de Clarice Lispector; os poetas Chacal e Bernardo Vilhena colaboraram com diversos artistas e bandas, como Blitz, Barão Vermelho, Ritchie, Lulu Santos e Lobão; Renato Russo adaptou o Soneto de Camões e da Primeira Carta de São Paulo aos Coríntios para criar seu “Monte Castelo”; Paula Toller e George Israel inspiraram-se em poemas de Murilo Mendes e Olavo Bilac para compor, respectivamente, “Tomate” e “Ouvir Estrelas”. Ainda nessa época, o cantor e compositor Arnaldo Antunes passou a se dedicar à literatura, com forte influência da poesia concreta. Entretanto, talvez o exemplo mais pertinente desse período seja a frutífera parceria de Marina Lima com o seu irmão, o poeta e filósofo Antonio Cícero. Este veio posteriormente a contribuir com Adriana Calcanhotto, uma das artistas que mais vem se dedicando ao entrecruzamento de literatura e música popular.
Nos anos 2000, sob a alcunha de nova MPB ou neoMPB, viu-se uma nova geração dar continuidade a esse legado: Iara Rennó musicou “Macunaíma”, de Mário de Andrade; o poeta Omar Salomão integrou a banda Vulgo Qinho & Os Cara; Tulipa Ruiz prestou sua homenagem a Manoel de Barros ao compor “A Ordem das Árvores Não Altera o Passarinho”; o poeta arrudA incursionou pela música em projetos com Alzira E e Peri Pane; em “Bogotá”, Criolo fez referência a “Vou-me embora pra Pasárgada”, de Manuel Bandeira; Botika, da banda Os Outros, e Estrela Leminski construíram suas carreiras onde música e literatura se tornaram indissociáveis; Alexandre Kumpinski, da banda gaúcha Apanhador Só, em parceria com o poeta Marcelo Noah, compôs “Peixeiro”; Romulo Fróes desenvolveu boa parte de seu repertório a partir de sua parceria com o artista plástico e escritor Nuno Ramos; e, entre outros tantos exemplos, está o grupo Isadora, que, ao lançar seu primeiro disco, “A Eletrônica e Musical Figuração das Coisas” (2012), trouxe para o seu universo a poética de Eucanaã Ferraz, Paulo Henriques Britto e do colombiano Carlos Patiño Milán.
Formado em 2005, Isadora é composto atualmente por Bruno Cosentino (voz, violão e guitarra), Andrés Patiño (violão e guitarra), Alexandre Jannuzzi (baixo), Gabriel Carneiro (bateria) e Pedro Tié (piano e eletrônica). Tendo passado pelo programa Experimente, do canal Multishow, e se apresentado no projeto Levada Oi Futuro, o grupo é um dos nomes da nova cena musical carioca. Tendo conhecimento disso, o Banda Desenhada convidou para esta entrevista seu vocalista e principal compositor, Bruno Cosentino. Este, que atualmente está envolvido na produção de seu disco solo, além de um projeto em parceria com o cantor Arthur Nogueira, falou de sua experiência na cena independente, suas influências e a forte ligação com a literatura. A entrevista, a princípio realizada em um café no bairro da Glória (RJ), foi posteriormente desenvolvida em e-mails e bate-papos em redes sociais.

BD – Apesar de o Isadora ter lançado seu primeiro álbum pela Bolacha Discos, um selo que reúne diversos nomes da neoMPB carioca, você não parece se integrar ou dialogar tão facilmente com essa geração. O que o leva a ter este distanciamento?

Bruno Cosentino – Eu acredito que o artista deva ser sozinho, pois só dessa maneira conseguirá ir fundo dentro de si e, quem sabe, encontrar elementos para criar uma obra relevante. Isso não quer dizer, é claro, que eu ache que ele não deva circular, conhecer muito bem a tradição e a produção de seu tempo, realizar seus desejos e torná-los parte de uma experiência concreta que, mais cedo ou mais tarde, vai alimentar sua música. No fundo, só pode ser verdadeiramente sozinho quem se coloca numa posição de diálogo e crítica com outras pessoas, opiniões e visões de mundo. Essa abertura total ao que nos é diferente é o pressuposto para nos tornarmos mais ricos como indivíduos, pois só existimos em relação ao outro. Essa, aliás, é a temática central do meu próximo disco, que vai se chamar “Amarelo”. Vou muito a shows. Gosto e desgosto do que vejo. Não gosto só das coisas com que tenho afinidades estéticas, mas de qualquer tipo de trabalho em que consiga perceber o estilo pessoal do artista. Além disso, a música tem que ser bem composta, bem escrita, bem cantada, bem produzida... acima de tudo, tenho que me emocionar com a música. Entre os artistas que lançaram seus primeiros discos recentemente, gosto muito da Karina Buhr, que tem um jeito particular de cantar e compor; do Leo Cavalcanti, que acho ótimo letrista e um músico superinventivo; da Marina Wisnik, que faz uma música pop com letras sonoras e inteligentes; do Arthur Nogueira, que sabe criar uma atmosfera musical delicada para as palavras; do César Lacerda, que tem harmonias e melodias lindíssimas; do Marcelo Jeneci, que faz músicas lindas com economia de elementos; do grupo Ava, que tem uma sonoridade plástica muito interessante. Enfim, poderia continuar citando outros, mas ia me alongar muito.

BD – Interessante que você não tenha citado praticamente nenhum artista carioca. O que você acha da cena local?

Bruno Cosentino – Bem, o grupo Ava é aqui do Rio e o Arthur e o César também moram na cidade e fazem parte da cena musical daqui. Além deles, poderia destacar também o Júlio Dain, Duplexx, Rabotnik, Chinese Cookie Poets, Negro Leo, Domenico Lancelotti, entre outros. Agora, tem uma coisa também: cena musical é um fenômeno sociológico e não estético. Para mim, nunca foi importante saber de que cidade são os artistas que mais gosto. Realmente, não levo isso em conta na hora de me apaixonar por uma canção.


BD – Nos últimos anos, por conta da crise fonográfica, as pequenas gravadoras e selos vêm ganhando reconhecimento e respeitabilidade. Mas, sabendo que, a princípio, os objetivos são os mesmos, quais são as reais diferenças entre estas empresas e uma major

Bruno Cosentino – Acredito que os pequenos selos prezam mais pela qualidade musical do seu produto e trabalham mais por amor à música. O que as grandes gravadoras ainda oferecem são sua rede de relações e seus profissionais de vendas, marketing, assessoria... e como possuem um elenco de artistas mais ou menos grande, podem também promover encontros entre eles, fazendo, por exemplo, um artista mais renomado emprestar seu prestígio para aquele mais novo, intermediar trocas artísticas, criando inclusive novos produtos. Além de terem mais dinheiro em caixa, que lhe permitiriam assumir os riscos do investimento em lançamentos. Acredito que novos modelos organizacionais são necessários para que o mercado de música possa voltar a conciliar sucesso comercial e sucesso artístico. Nesses últimos dez anos, com a força que a produção independente ganhou, percebo um movimento de reestruturação do mercado que já começa a esboçar uma forma.

BD – Sim, já começa a surgir uma segunda geração de artistas e bandas independentes que, acredito, terá mais facilidade de se estabelecer do que a sua predecessora. Mas me parece que ainda falta muito para que o mercado independente se consolide de fato, não?

Bruno Cosentino – O maior problema do mercado é que existe pouco dinheiro para remunerar os artistas. A grosso modo, antes existiam duas fontes de renda: discos e shows. Hoje, o dinheiro só vem de show. Não vejo mais sentido em separar majors e independentes. Mesmo porque as majors hoje não são grandes e muita gente boa e de sucesso não faz a menor questão de pertencer a uma major. Acho, sim, que a independência artística é fundamental; dessa ninguém pode abrir mão. E independência artística também quer dizer fazer concessões ao público, porque sua música só vai existir e ter relevância cultural quando for ouvida por um grande número de pessoas. Fazer concessão ao público é um ato de amor. De resto, e por isso mesmo, somos todos dependentes, eu sou dependente do meu produtor, dos meus músicos, dos técnicos de palco, dos jornalistas, dos meus artistas prediletos. Não existimos sozinhos. Somos todos dependentes.

BD – Por falar em concessões, esta geração possui alguns trabalhos bem pouco comerciais, como o do Rabotnik, Hurtmold, M. Takara e o próprio Isadora. Como você lida com essa questão em um período onde a fruição musical é tão superficial e descartável? Não sente um pouco de insegurança?

Bruno Cosentino – Conheço bem o trabalho do Rabotnik e do Hurtmold, vou aos shows e adoro! Ainda incluiria, aqui do Rio, o Duplexx, dupla do Bartolo e do Léo Monteiro, que amo, e o Chinese Cookie Poets, sensacional! No entanto, Isadora é diferente. Porque faz canção, que é letra e música, e, além disso, tem os arranjos fechados, sem espaço para improvisos. Nós não abrimos mão de experimentar, mesmo porque a experimentação é a base de qualquer criação artística. Quando se cria uma canção, por exemplo, o que se faz nada mais é que experimentar combinações de acordes, palavras e notas até chegar a uma forma final que você julgue satisfatória. Percebo que existe um filão no mercado para a música descartável. E ela acaba exercendo a única função de divertir as pessoas durante um tempo. Depois, como é descartável, some, é jogada no lixo. Acho que o desejo alto é fazer os dois, algo que contagie o público, mas permaneça no tempo. Acreditar nisso é quase como acreditar em Deus. Porque se não acreditasse no poder de uma canção em religar as pessoas em torno de um sentimento comum, independentemente de época, classe, sexo, religião e nacionalidade, não tinha nem porque fazer música.

BD – Mas e quanto ao aspecto financeiro, não há uma preocupação? Até porque viver apenas de música, pelo menos para boa parte desta geração, ainda é um sonho inalcançável... 

Bruno Cosentino – A preocupação existe. Não é à toa que quem trabalha no meio da música tem buscado novas formas de enfrentar a questão. O surgimento dos coletivos é um sinal claro disso. Muitos artistas também optam por arcar com os custos do próprio bolso: CD, vinil, show, iluminador, fotógrafo, designer gráfico, figurino... Agora, se por um lado existe a falta de dinheiro, por outro, as tecnologias digitais também baratearam muito a produção. De maneira geral, acho que esse clima de cooperação é fundamental para manter o mercado vivo, mas não acredito que seja o ideal. A falta de segurança material para o artista trabalhar e de dinheiro suficiente para pagar honestamente os profissionais envolvidos é um problema que deve ser solucionado com a criação de novos modelos de negócio para a música.


BD – Mudando um pouco de assunto, você parece ter uma ligação muito forte com a literatura. Como ela influencia seu trabalho musical?

Bruno Cosentino – Entendo a música como um meio de expressão artística entre outros. Como artista, tenho a necessidade de beber em outras fontes para ampliar meu repertório. Então, os livros me influenciam não só literariamente, na hora de fazer uma letra, por exemplo, mas artisticamente, de uma maneira ampla, assim como o cinema. Eu leio e vou ao cinema mais do que escuto música. É engraçado, mas é como se a música, por eu ter uma relação mais íntima e profunda com ela, já não me oferecesse tantos estímulos quanto preciso, e aí tenho que ir atrás de outras linguagens e cruzá-las na música. Acaba que o meu processo de fazer música é sempre sinestésico. Não à toa o nome do disco do Isadora é "A Eletrônica e Musical Figuração das Coisas". Quando fizemos os arranjos e mixamos o disco, pensávamos muito em cores de filmes, em ritmos de poemas, em como fazer soar musicalmente no arranjo a sensação causada tanto por uma viagem imaginária de um astronauta às pirâmides do Egito quanto pela leitura de um romance. Mas a minha relação com a literatura também vem de uma vivência prática. Apesar de ter cursado comunicação social, considero que minha formação acadêmica e intelectual de verdade foi na faculdade de letras, onde assisti durante três anos, como ouvinte, aulas de poesia brasileira e portuguesa e onde fiz amizades que são superimportantes para a minha música, como, por exemplo, a com o poeta Eucanaã Ferraz.

BD – A música popular brasileira sempre teve um elo muito forte com a literatura...

Bruno Cosentino – Sim. E essa relação se tornou mais forte ainda quando Vinicius de Moraes, à época um poeta de prestígio, começou a fazer parcerias com Tom Jobim. Antes dele, Orestes Barbosa, autor de “Chão de estrelas”, por exemplo, já havia lançado livros, mas foi com Vinicius que a poesia de alto nível se juntou com a música popular. Foi o encontro de uma linguagem tida como mais nobre com outra associada às classes mais populares e o consumo de massa. Esse encontro foi da maior importância para a música brasileira e instaurou um paradigma na canção popular que teve desdobramentos na carreira de toda a geração pós-bossa nova: Caetano [Veloso], Chico [Buarque] e companhia. Os irmãos Campos e a poesia concreta dialogaram diretamente com os tropicalistas, Arnaldo Antunes tem livros de poema lançados, Chico Buarque é romancista, Zé Miguel Wisnik é compositor e professor de literatura. Então, essa relação é muito forte na música brasileira e dura até hoje. 

BD – Achei pertinente você tocar no nome do José Miguel Wisnik. Ouvindo o disco do Isadora, me veio à cabeça o seu nome. E, por mais que pareça estranho, a sonoridade do álbum também me remeteu ao Radiohead. Eles são referências para o gupo?

Bruno Cosentino – Você acertou em cheio. Antes de gravarmos o disco do Isadora, o Andrés, guitarrista da banda, me apresentou o Radiohead e amei! Acho que eles utilizam, de maneira muito livre, tudo o que existe na tradição em favor de um modo próprio de fazer música. Implico às vezes com o excesso de melancolia deles, porque sou carioca, não nasci na Inglaterra, não tenho nada a ver com o céu cinza que eles têm sobre suas cabeças. Mas o “In Rainbows”, por exemplo, que é o que mais gosto, já é um disco mais leve, menos clima de fim de mundo, tem até canção de amor. O modo de experimentar deles, a construção dos arranjos, criando hierarquias complexas para os muitos sons que usam, além dos efeitos eletrônicos, influenciaram muito a gente nesse primeiro disco. O Zé Miguel Wisnik, assim como o Radiohead, ouvi sem parar durante anos: o "São Paulo Rio"[2000] e "Pérolas aos Poucos" [2003]. O piano do Zé Miguel é de uma delicadeza infinita, assim como o canto baixo e meio pra dentro. As harmonias são também uma beleza. Além de grande compositor, ele é um ensaísta brilhante. Quando estávamos em estúdio, a leitura do livro "O Som e o Sentido" teve um impacto real nos arranjos, porque à medida que íamos conhecendo a música tanto de povos tribais quanto de compositores de vanguarda tínhamos vontade de usar esse conhecimento recém-adquirido na feitura do disco. No fim das contas, acabou que, para nós, Radiohead e Zé Miguel Wisnik se tornaram nomes muito próximos.

BD– A vanguarda paulista também chegou a influenciá-lo?

Bruno Cosentino – Não. Mas gosto muito do grupo Rumo. Quando ouvi, teve grande impacto sobre mim, porque, a partir daí, comecei a pensar a canção popular a partir da dicção do compositor e do intérprete, que é a teoria do Luiz Tatit. Depois li os livros dele e pude entender melhor o que antes só percebia intuitivamente. Acho [o livro] "O Cancionista” genial!

BD – Você está gravando seu primeiro disco solo. Por que essa opção? Há alguma limitação artística estando em uma banda?

Bruno Cosentino - Não, pelo contrário. Isadora tem liberdade artística total. O que na verdade desejo com meu disco solo é poder mostrar um lado da minha produção que não se encaixa muito bem na estética do grupo. Os arranjos com o Isadora são cheios de elementos, polifonias, polirritmias. No meu disco solo, os arranjos serão mais enxutos, mais diretos. A formação instrumental terá tambores africanos, baixo acústico, guitarra elétrica e trompete. Convidei o Bartolo pra fazer a produção musical. Adoro o tratamento que ele dá ao som, com muitas sutilezas de timbres. Quem está criando os arranjos junto comigo são o Thomas Harres, que vai tocar percussão, o Pedro Dantas, baixista, e o Pitter Rocha, guitarrista. Quando estivermos mais adiantados nos arranjos, convidaremos o trompetista. Quero que o som transmita para o público um ritmo envolvente, quente, que tenha apelo ao corpo. A temática das canções surgiu a partir da experiência dos primeiros anos do meu casamento, que me permitiram conhecer a mim mesmo de uma maneira muito profunda. A certa altura, quando li o trecho do livro “Cartas a um Jovem Poeta”, do Rilke, em que diz que nos tornamos um mundo para si mesmos a partir do outro, tudo isso que sentia ficou mais claro.

BD – Complexo, não?

Bruno Cosentino – Na verdade, essa temática é bastante simples, porque é vivenciada em diferentes graus por todas as pessoas. O que o Rilke diz é que o hábito de pensar sobre si mesmo muda completamente quando precisamos pensar também sobre o outro. Quando amamos alguém temos de lidar com as diferenças dessa pessoa desde o nível mais banal da vida cotidiana até o nível espiritual. E esse contraste torna mais claro e óbvio quem somos. É um sentimento religioso, de pertencimento. Senti forte isso em mim, como naquela música linda do Eden Ahbez,“nada é maior quedar amor e receber de volta amor”[trecho de “Nature Boy”].

BD – Além do solo, você também está gravando um disco com Arthur Nogueira. Como se deu esse encontro? Você possui alguma influência da música do Pará?

Bruno Cosentino – O que eu adoro na parceria com o Arthur é o fato de ter admirado a música dele mesmo antes de conhecê-lo. Ele tem uma preocupação com a letra das canções que é rara hoje em dia. E me identifico com isso. Fizemos dois shows juntos, um no Rio e outro em Belém, e começamos então a conversar sobre o disco. A ideia é mostrarmos canções da minha parceria com o Arthur e de parcerias que eu e ele temos com os poetas Antonio Cicero e Eucanaã Ferraz. Convidamos o Dé Palmeira para tocar baixo e produzir uma das faixas.  Além disso, tem também a participação do Guinga tocando violão numa canção minha com o Antonio Cicero. Ela já está até gravada e ficou lindíssima! Vai ser um disco sobre a nossa relação com a música e a palavra. Quem está fazendo a produção musical é o Andrés Patiño, do Isadora. Sobre a influência do Pará, não tenho nenhuma, embora admire a exuberância musical e cultural de lá. A própria música do Arthur é desenraizada  porque não transparece os ritmos regionais que agora o Pará está exportando para o Sudeste.
        
BD – Apesar de toda essa visibilidade que a cena parece está tendo, parece haver certo preconceito por parte dos críticos e formadores de opinião em relação a trabalhos cujo registro cultural não soe globalizado. Você tem esta mesma impressão?

Bruno Cosentino – Acho que isso acontece mesmo. Tenho a mesma impressão. Acho que esse descaso dos críticos se deve ao fato de que a sigla MPB após o tropicalismo passou a ser identificada a um tipo de música que mistura diferentes ritmos, estilos, gêneros nacionais e internacionais e diálogos com outras linguagens artísticas, sobretudo a literatura. Ela é um terreno em que tudo é permitido, porque tudo é brasileiro. O conceito que está por detrás é o da antropofagia cultural, do Oswald de Andrade. Então, quando alguém canta só samba, embora, é claro, seja música popular brasileira, muitos não consideram parte da MPB, exatamente porque se encerra num único gênero. Um artista que fica na fronteira, por exemplo, é o Paulinho da Viola, considerado tanto um sambista quanto um compositor de MPB, justamente por causa de suas harmonias sofisticadas e seu canto cool, que se descolaram um pouco do formato tradicional do samba. O princípio antropofágico é o que ainda orienta a produção musical que surgiu com as facilidades das tecnologias de gravação digital, os timbres eletrônicos e tal. Quem melhor falou sobre esse espírito de época foram o Zé Miguel Wisnik e o Arthur Nestrovsky, numa série de palestras que apresentaram no Instituto Moreira Salles, chamada "O Fim da Canção". Lá eles analisam brilhantemente como as novas tecnologias e os novos hábitos de consumo da música afetam formalmente a composição da música popular hoje.
  
BD – Parece impossível para a neoMPB fugir dos dogmas da antropofagia...

Bruno Cosentino – Acho que a música brasileira não pode e nem deve deixar de ser orientada pela antropofagia cultural. Ela não é um dogma, porque o dogma é uma crença em algo imutável. E a teoria antropofágica é exatamente o contrário: a partir da abertura sem preconceitos a culturas diferentes da nossa, criamos e recriamos uma cultura brasileira que tem mobilidade e é universal por causa disso. Nessa questão, estamos na ponta, porque não é qualquer país que cruza tão facilmente fronteiras intelectuais, sociais e culturais como o Brasil. Você vê, só estamos falando sobre isso agora porque, em certo momento, um cantor e compositor popular baiano, genial e abusado, travou um diálogo intelectual de alto nível com os poetas concretos, paulistas e eruditos. Por causa desse encontro, Oswald foi colocado em prática na televisão e no rádio pelos tropicalistas, que incorporaram o mercado de massas também como um elemento estético em sua música. Ali, eles deram a palavra final sobre a música brasileira, o que quer dizer que a música brasileira pode ser o que ela quiser. A antropofagia cultural é desejável por isso, porque nada deve ser imposto a ninguém. Devemos ter liberdade para buscar o que melhor nos traduz, sempre deixando que as coisas nos penetrem. É o contrário desse papo de multiculturalismo, de respeitar a cultura alheia e ficar cada um na sua. É mais do que isso, tem que querer ser o outro, transformar-se a partir do outro.

2 Responses to a frase, o conceito, o enredo, o verso

  1. Caros desconhecidos brasileiros

    Vim parar a este blogue por confusão com o título que ostenta: Banda Desenhada.

    Sou português, de Lisboa, e também bloguista (será que dizem blogueiros? No vosso português do Brasil, usam muito esse sufixo), e bloguista, repito, do blogue "Divulgando Banda Desenhada" (http://divulgandobd.blogspot.com)

    Ora, como com certeza sabem, enquanto vocês dizem "Histórias em Quadrinhos", nós (agora) usamos a expressão Banda Desenhada (é certo que, até à década de sessenta do século passado dizíamos "Histórias aos Quadradinhos" mas também "Histórias em Quadradinhos". Todavia, sempre referindo-nos àquele tipo de arte popular (há quem aclassifique de 9ª Arte) que vive de sequências narrativas por imagens.

    Vocês aí no país irmão até têm "Gibitecas" (nós temos "Bedetecas"), e, por conseguinte, sabem que ao falarmos de BD, Banda Desenhada, Histórias em Quadrinhos, Gibis, etc., estamos a falar de um tema que nada tem a ver com Música (excepto haver bandas desenhadas a contar a vida de músicos e/ou de bandas musicais).

    Daí ter ficado intrigado com a escolha que fizeram para título do vosso blogue :-)
    Podem explicar-me o porquê?

    Abraços.
    Geraldes Lino

  2. Geraldes, o blogue é sobre artistas e bandas independentes. Além deles, também entrevistamos artistas plásticos, designers e fotógrafos envolvidos com a cena, daí o "desenhada" do site.

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