café e sinceridade quentes

fotos: daryan dornelles

Romulo Fróes já havia cantado a pedra: “Existe uma cena que começa no disco do Mulheres Q Dizem Sim e que tem no Los Hermanos a sua maior expressão”. O disco da banda carioca, lançado pela Warner em 1994, não chegou a causar grande repercussão, mas tratava-se de um dos trabalhos mais criativos do cenário musical brasileiro daquele momento. Com forte acento pop rock, herdada da geração 80, as bandas surgidas na década de 1990 empregavam em seus trabalhos os mais diversos gêneros musicais como maracatu, baião, forró, rap, punk, reggae, funk e música eletrônica. Assim, destacaram-se bandas como Skank, Pato Fu, Raimundos, Mulheres Q Dizem Sim, Acabou La Tequila, Planet Hemp, O Rappa, Gangrena Gasosa, Catapulta, Professor Antena e, claro, Chico Science e Nação Zumbi, Mundo Livre S/A, Mestre Ambrósio e todo o restante da cena manguebeat. Mesmo que em alguns destes casos ainda fosse possível ver claramente a linhagem rocker, em outros, a música popular e a regional estavam tão impregnadas que tornava-se impossível classificá-los em algum gênero específico. O mesmo também ocorreu nas fileiras da chamada MPB, com a aparição de artistas como Marisa Monte, Pedro Luís, Carlinhos Brow, Adriana Calcanhotto, Zeca Baleiro e Chico César, responsáveis por renovar o cenário musical e tornar mais tênues os limites entre os estilos. Entretanto, se a MPB não teve muitas dificuldades em ser acolhida pelas gravadoras da época, o rock nacional acabou sendo absorvido por pequenos selos – em sua maioria, apêndices das majors. Assim, com orçamentos e infraestrutura bem mais modestos, surgiram os selos Banguela (Warner), Chaos (Sony), Plug (BMG), Tinitus (Polygram) e o Rock It!. Mesmo que ainda de forma pouco emblemática, foi possível perceber o nascimento de uma leva de artistas que ansiavam por sua independência, seja no processo de criação, produção ou mesmo em aspectos mais burocráticos do trabalho. Estas características se tornaram, uma década depois, a principal bandeira levantada por uma nova geração de músicos que, inseridos na cena independente e sem grandes diálogos com as mídias tradicionais, iniciaram um novo período da música popular brasileira.  
Oriundo do cenário musical dos anos 90, o músico Domenico Lancellotti é figura primordial no que se convencionou chamar de nova MPB. Filho do compositor Ivor Lancellotti, Domenico inicou sua carreira, ainda adolescente, como baterista do grupo Quarteto em Cy. Nos anos 90, uniu-se aos seus colegas de escola e criou a banda Mulheres Q Dizem Sim. Tempos depois, ao lado de Moreno Veloso e Alexandre Kassin, Domenico participou do cultuado projeto +2, responsável pelos álbuns “Máquina de Escrever Música”, de Moreno (2000); “Sincerely Hot”, de Domenico (2003); e “Futurismo”, de Kassin (2006). Nestes discos, o grupo acentuou seu flerte com a música eletrônica, o rock e a tradicional música brasileira. Ainda neste período, ao lado de seus amigos, formou em 2002 a Orquestra Imperial, a surreal e iconoclasta big band composta por quase duas dezenas de músicos, entre eles: Kassin, Pedro Sá, Rodrigo Amarante, Moreno Veloso, Nelson e Rubinho Jacobina, Nina Becker, Thalma de Freitas, Wilson das Neves, Berna Ceppas e Stephane San Juan. Em 2007, junto com Stephane e Dany Roland, lançou "Os Ritmistas" (Dubas), onde explorou a diversidade da percussão. Dois anos depois, ao lado de Pedro Sá, iniciou o projeto de improvisação "Vamos Estar Fazendo". Finalmente em 2011 lançou pela gravadora Coqueiro Verde o seu álbum solo “oficial”, o elogiado “Cine Privê”, contando com as participações de Adriana Calcanhotto, Jorge Mautner e alguns de seus colegas da Orquestra.
Extremamente ativo na atual produção musical brasileira, Domenico foi convidado para uma entrevista ao Banda Desenhada. O músico, mesmo com fortes dores na coluna e saído de uma emergencial sessão de acupuntura, foi bastante solícito e nos encontrou em um café no bairro do Leblon. Lá, nos contou a respeito de sua carreira, a forte ligação com o samba e expôs a sua opinião sobre uma série de outros assuntos.

BD – De uns tempos para cá, vem se falando muito que a atual cena de musica brasileira teria sua origem em bandas dos anos 90, como o Acabou La Tequila e o Mulheres Q Dizem Sim, da qual você fez parte. Como vê o resgate dessa época?

Domenico – Quando conheci o Romulo [Fróes], ele falou à respeito disto, que curtia o Mulheres Q Dizem Sim. Fiquei lisongeado... Mas, afora ele, não estava sabendo de nada não. [Risos]. Já li uma coisa ou outra no Twitter, mas não tinha conhecimento que havia tantas pessoas comentando. Para mim, participar da banda foi uma experiência muito importante. O Mulheres Q Dizem Sim foi a primeira banda que tive. Mas não acho que o disco seja tão representativo assim para o que era a banda. Foi o nosso primeiro trabalho em estúdio, em um esquemão de gravadora. Ainda pegamos a indústria fonográfica com força. Então havia aquela mão de ferro. Queríamos muito que o Arto Lindsay produzisse o disco. Ele veio ao Brasil para produzir o Caetano [Veloso] e se aproximou de nós. O Arto foi muito importante para o nosso desenvolvimento, deu o primeiro pedal de distorção para o Pedro [Sá]. Mas teve uma série de problemas com as datas de gravação. O Arto havia marcado para março, mas não pôde e, como havíamos assinado um contrato com a gravadora, ela não quis esperá-lo. E aí toma-lhe o Guto Graça Mello [produtor responsável por discos de Roberto Carlos, Maria Bethânia, Milton Nascimento, etc...]! [Gargalhadas]. Fizemos o disco, éramos muito verdes, até tocávamos bem, mas não tínhamos experiência em estúdio. Só tínhamos feito uma demo com o Fábio Fonseca, que, em meu ponto de vista, é até melhor que o próprio disco. Queríamos que ele também produzisse o álbum, mas a gravadora já não estava aceitando nenhuma recomendação nossa. Cogitamos também o Lenine e o Marcos Suzano, mas a Warner também não aceitou. Então fomos para o estúdio com o Guto Graça Mello mesmo. Chegamos achando que ainda daria para fazer alguma coisa diferente e decidimos não colocar nenhum efeito no disco. Nada. Reverber zero. Porque, para nós, reverber era sinônimo de MPB! [Risos]. E o Guto, para conquistar a gente, topou. Mas, escutando tempos depois, deu para perceber que o disco ficou um pouco com som de fita demo. Não tem um corpo, sabe? Mas é um registro e tem algumas coisas que gosto, mesmo não escutando há muito tempo. A banda era muito bacana, tinha o Pedro, o Maurício [Pacheco], o Palito e eu. Fora os agregados, como o Kassin e o Moreno... A partir do Mulheres Q Dizem Sim surgiu o Gold Nigth Varsóvia, que era uma banda punk composta por essa galera toda. Foi uma época muito importante para nós.

BD – E você percebe que o som desta época realmente influenciou a cena atual?

Domenico – Eu acho que aquela geração era diferente da anterior. Ainda era rock, mas havia influências de várias outras coisas. Tinha os Raimundos, Acabou La Tequila, Planet Hemp, Boato... No sul tinha o Doiseu Mindoisema... Os gêneros se misturavam, mas não havia a pretensão de se criar um movimento. Era algo muito orgânico e natural. Venho de um ambiente mais de MPB. O meu pai é compositor e sempre esteve envolvido com o samba. Geralmente, esta turma tem tendência a ser muito radical, de não tolerar mudanças. Só fui escutar rock por conta dos meus amigos de escola: o Pedro, o Moreno, o Kassin... E quando começamos a tocar, surgiu a mistura. Mas, afora Carne de Segunda e Do Amor, realmente não sei quem de fato foi influenciado pelo Mulheres Q Dizem Sim. Também havia nesta mesma época o manguebeat... Lembro da primeira apresentação do Chico Science e Nação Zumbi aqui no Rio, no Circo Voador. Foi um espanto.

BD – O manguebeat parece ser um dos principais responsáveis pela nova cara da MPB...

Domenico - É muito legal toda essa movimentação que está tendo em São Paulo. Gosto muito do Romulo, Tulipa [Ruiz] e de vários outros, como o Criolo... Eu o conheci e fiquei admirado com a sua figura e o seu trabalho. Mas uma crítica que tenho em relação a esta história de nova cara da MPB é que às vezes a música parece seguir tendências, assim como a moda: vou usar isto, vou usar aquilo, vou usar aquilo outro... Ouço muitos trabalhos parecidos, repetitivos, com o mesmo tratamento, sabe? Com o mesmo som de bateria, a mesma instrumentação... Estas coisas me cansam um pouco. Parece que há uma cartilha indicando qual é o tratamento adequado para que o seu disco esteja na moda. E isto parece vir à frente da música. Como se a produção fosse mais importante que o conteúdo. Vejo produções incríveis onde a canção não tem a menor importância.

BD – Além do manguebeat, o projeto +2, do  qual você fez parte, também é considerado um dos pontos de partida para se entender a cena atual. 

Domenico – É, realmente, existe essa ideia do +2 ser o início de algo, até muito mais do que o Mulheres Q Dizem Sim. Aprendemos a gravar e a fazer tudo sozinhos, cuidávamos de todas as etapas do disco, inclusive a arte da capa... Não havia a necessidade de você ser um exímio musicista para gravar aquelas músicas... Deixávamos, de forma intencional, os erros e as imperfeições. Não as corrigíamos e tratávamos as canções de uma forma bem particular... Acho que foi algo que começou ali, no disco do Moreno, e que hoje vejo em outros trabalhos. Nós tínhamos uma grande preocupação com a canção que, na verdade, era a tradicional canção brasileira, só que tratada de uma maneira não convencional. Acho que esta é uma das características mais fortes do +2.


BD – O +2 e uma boa parte dos músicos de hoje parecem não temer a experimentação. Mesmo pertencendo ao circuito independente que aos poucos vem criando um público cativo, você nunca se preocupou com a má receptividade ou a incompreensão de seu trabalho?

Domenico – Particularmente, nunca pensei que a minha música pudesse tocar no rádio. Na época do Mulheres, precisava ter muito dinheiro e uma estrutura gigantesca para que uma música entrasse na programação. Então, a partir dali, já estávamos decididos a abrir mão disso tudo e fazer aquilo que acreditávamos, sem ter ninguém para nos dar ordens. O único contato que tivemos com o mercado foi por conta do disco do Moreno, que foi lançado em âmbito internacional. Fomos fazer um show em Nova York e o Joe Boyd [produtor musical norte-americano responsável por álbuns de Jimi Hendrix, Pink Floyd, Nick Drake, R.E.M, entre outros] foi assistir. Nós não sabíamos direito quem era e quando ele quis participar da mixagem do disco, dar pitacos...  a gente não deixou! [Risos]. O Joe Boyd foi muito compreensivo e educado com aquele bando de moleques. [Risos]. Era o último suspiro da indústria fonográfica, mas, mesmo assim, conseguimos fazer tudo do nosso jeito. Houve várias brigas. A gravadora não acreditava na capa do disco e achava que deveríamos fazer uma diferente para os Estados Unidos. Também quiseram mudar o título. É sempre assim, americano acha que tudo tem que ser diferente para eles. Mas nós mantivemos o controle de tudo, o disco era nosso. E aí, depois de lançamento do “Máquina de Escrever Música”, depois de todo aquele investimento, a gente, no segundo disco, mudou o nome da banda e o estilo! Mudamos tudo! [Risos]. E no terceiro mudamos mais uma vez. Então, na verdade, o +2 foram três trabalhos que começaram do zero.

BD – E você não se preocupava com a pouca repercussão do projeto?

Domenico - A indústria fonográfica tem esse pensamento: “Se você não for Ivete Sangalo e não vender milhões, não nos interessa”. Assim, cada vez mais sinto que o que faço é uma agricultura familiar. Faço a mesma coisa que o senhor que vende batatas na feira, que vai aos poucos conquistando a sua freguesia. É um negócio pequeno que vai chegar a um grupinho aqui, a outro ali... Na verdade, é claro que me preocupo se as pessoas vão gostar. Quero ser reconhecido e tudo mais, mas as minhas inquietações e a criação artística são totalmente pessoais. O mais importante é que eu acredite naquilo. Quando lancei o “Cine Privê”, veio um crítico de São Paulo me falar: “Ah, você deveria ter sido mais ousado! Porque o seu outro disco era mais experimental”. Eu não acredito que o meu outro disco seja mais experimental que este e nem acho que o experimentalismo tenha que estar à frente da minha música ou virar uma marca. Fico um pouco chateado com esses comentários, mas não vou mover uma palha para alterar o meu trabalho, sabe? “Porque o meu público quer”... A maior parte das pessoas querem mais do mesmo, cara! Este é o grande problema.

BD – Em uma entrevista você disse ser influenciado por João Donato, Tom Jobim, João Gilberto e Marcos Valle. É possível fazer música brasileira sem passar pela bossa nova? O quanto ela liberta e aprisiona?

Domenico – Eu gosto muito de samba também. Gosto muito. A bossa nova, com certeza, é muito importante para a música brasileira, mas, em ninha opinião, Tom Jobim e o João Gilberto transcendem ao movimento. São artistas incomensuráveis. Tom Jobim é um Bethoven e o João Gilberto, estilisticamente, é revolucionário! Para mim existe um triunvirato que é o Donato, o Jobim e o João Gilberto. Eles são um caso a parte. Há também um lado muito chato na bossa nova, uma parte meio kitsch, estereotipada, mas que, vista de fora e sendo reapropriada, tornar-se supermoderna e muito interessante. No Japão, por exemplo, vários músicos se apropriam da música brasileira e mexem nela de uma forma muito livre. Como Cornelius, Cibo Matto, Takako Minekawa, Señor Coconut... Além dos americanos como o Beck e o Devendra [Banhart]...

BD – Li que aos 17 anos você chegou a acompanhar o Quarteto em Cy. Como foi isso?

Domenico – Sim, foi o meu primeiro trabalho profissional, com turnê e tudo. Foi uma grande escola. Eu era moleque, tinha uns 15 anos e fazia um curso no Centro Musical Antonio Adolfo. Lá eu conheci o filho do Ruy [Faria] do MPB4 e da Cynara [integrante do Quarteto em Cy]. Nossos pais já se conheciam e o baterista do Quarteto, o João Cortez, estava indo para o Japão dar aula de samba. Ele passava longas temporadas por lá e o Quarteto acabava ficando sem baterista. Como estava fazendo o curso meio que para aprender a ler partitura, o pessoal acabou me chamando. Fiz primeiro o People, que era uma casa noturna antológica que havia aqui no Leblon. A diretora musical do espetáculo era a Célia Vaz. Cheguei lá e me deram um calhamaço com as partituras do maestro Oscar Castro Neves e eu  não sabia ler porra nenhuma! [Risos]. Mas, por sorte, também me deram uma fita cassete! Decorei aquela parada toda. Era um show todo dedicado ao Chico Buarque. Eu botava a partitura ali, fingia que lia e ficava virando as páginas. Agradei e assim fiz a turnê inteira! Fui pro Nordeste, pro Norte, pro Sul... Teatros lotados.

BD – Você também tem um forte elo com o samba. Pode-se dizer que o projeto “Os Ritmistas” tem a ver com esta herança musical de seu pai?

Domenico – Claro. Eu sou músico por causa da infância que tive, por ser filho de meu pai. Fui aprendendo aos poucos, vendo-o fazer música... E uma coisa que sempre gostei foi de estúdio. Para mim, é um dos ambientes mais agradáveis que existe no mundo! [Risos]. Ainda mais quando eu era criança e meu pai me levava ao estúdio da Odeon, lá em Botafogo, para assistir Clara Nunes, Alcione, Nana Caymmi e João Nogueira gravarem as suas músicas. Esta era a turma dele. Era uma loucura, todo mundo tocando... A vivência no estúdio é algo que deveria ser experimentada por todos. Ali, você entra no som e, pode ter certeza, em nenhum outro lugar terá a mesma sensação. Não adianta. É broxante você ver o disco ser mixado, perder aquelas várias dimensões e se tornar uma fotografia chapada. Então o estúdio me influenciou à beça. Eu queria viver ali. Lembro também do papai ligando da rua para gravar alguma melodia na secretária eletrônica... Foram estas coisas que serviram de estímulo para mim e para o meu irmão [Alvinho Lancellotti]. Devo tudo ao samba, às festas e reuniões com todos aqueles artistas tocando, e aos meus amigos também: ao Pedro Sá que me apresentou Jimi Hendrix e começou a tocar comigo. Ele também foi muito importante. O Pedro vinha de um caminho diferente, tinha outro ponto de vista. Muitos da minha geração nunca escutaram MPB ou samba, eram mais do rock e, em determinado momento, foram para o samba, mergulharam de cabeça e trouxeram algo de diferente para o gênero. Na arte, isto é muito saudável e bonito. As coisas são assim. Não tem por que enclausurar o samba em uma redoma e deixá-lo intocável.

BD – Em seu disco há uma homenagem ao Hugo Carvana e você já falou que se sente atraído pelo personagem do malandro carioca, bom vivant. Parece que tanto a sua música quanto a de boa parte da cena carioca refletem um pouco isto. Há uma leveza e despretensão no som. Você concorda?

Domenico – Pode ser. Acho que o Rio é agregador, sabe? Tem coisas aqui que vêm de vários outros lugares. E isto é muito estimulante não só para a música quanto para a arte em geral. O Rio tem o samba que é de grande importância para a cidade e que acaba interferindo e modificando o cotidiano do carioca. Também tem a questão da nossa informalidade. O Rio tem uma relação com o mar, com a zona portuária, que é responsável por sua malícia, malandragem e senso de humor. Havia antigamente, nessa região, um intenso comércio e o diálogo com pessoas do mundo todo... O +2 tocou muito em Barcelona, então vimos nos últimos dez anos uma transformação muito agressiva. Eles foram expulsando do centro histórico os mais pobres, a população marginalizada, e injetaram muito dinheiro na região. Isso, cara, foi, no pior sentido, uma lavagem no espírito da cidade, modificando o comportamento, a cultura de Barcelona.

BD – Você está falando de Barcelona ou do Rio? [Risos].

Domenico - Pois é! Tenho muito medo do que vem acontecendo. Eu acho este prefeito, o Eduardo Paes, muito equivocado. O que me faz sentir bem no Rio é justamente a nossa origem africana e ele quer alterar isto! Estas mudanças que vêm ocorrendo me incomodam muito. Tudo tem que ser uniformizado? Tudo tem que ficar caro, asséptico e inodoro? Acho estas medidas extremamente agressivas para o espírito da cidade.


BD – Seu CD tem um ar saudosista, tanto nas referências ao cinema quando ao LP. Prestes há completar 40 anos, estas questões estéticas e existenciais permeiam de alguma forma o seu trabalho?

Domenico – O que me influencia são as coisas que eu gosto e sempre gostei. Praticamente só escuto música antiga, sabe? Raramente ouço alguma coisa nova. Só quando alguém traz para mim. Kassin fala muito isto: “Cara, compre o disco do fulano de tal, você vai gostar”! Aí vou lá, compro e realmente gosto. [Risos]. Mas acabo escutando mais as coisas antigas. O fato de o meu disco ter esta sonoridade talvez seja um contraponto ao que vem sendo feito nas gravações de hoje em dia: todos estão muito dependentes das máquinas! Você toca só um pedacinho e aí repete o trecho várias vezes! A música perdeu um pouco a humanidade, o sentimento. A crise da música também passa por esta questão. Não se trata apenas de um problema econômico. As pessoas compram um disco e não conseguem mais sentir nenhum traço de emoção. Aí, você vai para o Youtube e tem um cara tocando violão com um som de merda e sendo assistido por milhares e milhares de pessoas. Porque ali há um ser humano. Então, a busca pela autenticidade me é muito cara. Porque passa pela minha infância, pelo momento em que comecei a lidar com música. Para mim, essa época é matéria de poesia, mas não a utilizo de forma saudosista. Meu som é contemporâneo, feito com a cabeça que tenho hoje. Não quero reproduzir exatamente o que se fazia no passado.

BD – Uma das coisas que vem me deixando intrigado é como esta geração está atrelada às artes plásticas. Além de Kiko Dinucci, Tulipa, Karina [Buhr] e Filipe Catto desenharem, você e Romulo Fróes já foram assistentes de artistas plásticos. No seu caso, do Luiz Zerbini. Existe alguma influência das artes plásticas no seu trabalho?

Domenico – Teve uma época em que eu quis ser artista plástico. Minha família me incentivava muito para isso. Só que com o +2 acabei priorizando a música e deixei as artes de lado. Gostava muito de pintar, mas, com a falta de tempo, parei. Acredito que vivemos um momento renascentista, esta geração lida com um material muito mais amplo do que a música. Às vezes, mesmo não tendo o domínio desta ou daquela linguagem, um artista consegue criar algo bastante expressivo por conta de sua intenção, por saber exatamente o que quer. E isso vem da arte moderna: Paul Gauguin dizia: “Não vou desenhar com a mão acostumada. Vou usar a mão esquerda, porque com esta outra aqui eu já desenho muito bem”. Picasso, com 17 anos pintava como um velho, precisou ter 80 anos para pintar como uma criança. Hoje, na música, existe uma busca por um som mais expressivo e menos maneirista. Adoro ouvir virtuoses tocando, mas o que me emociona de verdade é o sentimento encontrado na maneira de se tocar.

BD – Parece que a sua geração busca em seus trabalhos muito mais o ruído e a fragmentação do que o equilíbrio...

Domenico – Sim. Olhe onde nós estamos! A gente acaba absorvendo todo este caos, o entorno, o ônibus, a máquina do café! [Risos]. Estas coisas já estão dentro de nós, não tem mais como nos desvencilharmos. Duchamp e John Cage já haviam percebido isto... A gente está vivendo a maldição deles! Estamos dentro desse contexto: do ruído, da sujeira... É o que a gente vive, não tem como ser diferente.

BD – A Adriana Calcanhotto é uma artista de uma geração anterior a esta e que parece se integrar muito bem à proposta de vocês. Como começou esta ligação?

Domenico – Ela é uma artista que também tem interesse em várias outras áreas: literatura, artes plásticas... Ela acompanha, compra, lê bastante. A Adriana procurou a gente depois de lançarmos o disco do Moreno. Ela gostou muito do álbum e veio nos contar que, mesmo tendo feito vários discos, não havia conseguido o domínio do seu trabalho como gostaria. Sempre havia um produtor... A Adriana tem muitos mais problemas do que a gente: o seu público é muito maior, tem a gravadora e vários outros interesses que precisam ser negociados na hora de fazer um trabalho novo. E quando ouviu o disco do Moreno, ela se interessou muito, pois queria fazer algo semelhante, poder se expressar daquela forma. E aí começou um longo período de namoro... A Adriana participou de um show nosso, depois fez uma música com o Kassin... e fomos criando vínculos. Hoje somos grandes amigos e participamos de seu trabalho. E eu mais ainda porque fui tocar bateria em sua banda. Gosto muito do seu último disco, "O Micróbio do Samba". Ele começou totalmente por acaso. A gente participou dos álbuns infantis [Adriana Partimpim e Partimpim 2] que deram uma liberdade muito grande para ela, tanto na linguagem quanto na parte dos arranjos. A Adriana teve liberdade para improvisar e também utilizar instrumentos que até então não tinham espaço em seus discos de carreira. E o seu trabalho seguinte foi "O Micróbio". Começou como um registro de estúdio, para que ela pudesse mostrar para outros intérpretes as suas novas composições de samba. Começamos a gravar assim, eu e ela, depois chegou o Alberto Continentino. Toquei pensando em um tipo de samba anterior à bossa nova. A bossa nova tem um lado... [A máquina de café faz um ruído ritmado e ensurdecedor]. Tipo isso aí misturado com jazz! [Gargalhadas]. O samba anterior à bossa não tinha tantas variações. Busquei esteticamente este caminho. Não usei prato, fiz um negócio bem artes plásticas! [Risos]. Pensei em um conceito bem fechado. Acho que rendo muito bem assim: tendo o mínimo e, a partir daí, conseguindo uma infinidade de nuances.

BD – Por falar em produção de álbuns, a quantas anda o novo da Orquestra Imperial?

Domenico – Estamos fazendo o disco agora. É uma loucura! Porque todo mundo é compositor e existem vários intérpretes... Quando fomos gravar o primeiro disco decidimos utilizar só composições próprias e inéditas. Todas as outras músicas que tocamos nos bailes já são clássicos muito bem gravados e não dá pra competir com uma gravação da Elza Soares ou do Lúcio Alves. Começamos então a compor especificamente para o álbum, criando um repertório que não fosse atrelado às nossas carreiras solo, com uma linguagem própria. E aí surgiram as parcerias. Estamos levantando um repertório lindo! Tem uma parceria da Thalma com o João Donato que é fabulosa! Tem uma música minha e do Kassin, tem várias do Rubinho Jacobina... Ele está em uma excelente fase. Tem duas músicas do Nelson Jacobina com o Mautner... São coisas incríveis! O repertório está bem bonito, tem samba-canções, boleros...

BD – No mesmo clima do primeiro, imagino...

Domenico – É. Mas o outro era “Carnaval Só No Ano Que Vem”, ou seja, músicas do meio do ano. As canções eram mais lentas. Neste, a gente está querendo fazer as pazes com o suingue. O disco é puxado para o balanço.




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comentários - café e sinceridade quentes

  1. andre :

    Adoro musica, boas imagens e textos bem escritos. O banda desenhada consegue suprir tudo isso com uma competência e profundidade fora do comum dentro da pasmaceira que assola a midia brasilis nesses quesitos. Sinto apenas que existe um certo bairrismo no blog, como se toda boa musica nova estivesse concentrada no eixo rio sp - o que definitivamente não é verdade. Sou de salvador e aqui temos bons exemplos de boa musica sendo produzida fora dos padrões dominadores da cena axé- pagode. Citaria a Rumpillezz, Marcia Castro, Manuela Rodrigues, Mariela Santiago... Espero que vocês expandam horizontes e façam desse o melhor blog de nova musica realmente brasileira, com antenas apontadas para todos os pontos cardeias do país. abraços
    Andre Urso

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